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Era Necessário

 

Augusto Carvacho (A.C.): A sua pintura anterior tinha como característica uma clara indefinição, de facto reconheci-a num texto como “uma pintura de diferimento infinito”.

Oscar Baeza (O.B.): É verdade, só que esse trabalho correspondia ou estava inserido naquilo que eu compreendo e que denominarei como uma pintura de Tese, aquele trabalho foi consequência de uma lógica marcadamente académica. Daí ter sentido a necessidade de me aproximar do universo ficcional, e nesse sentido, a figuração foi o modo que encontrei para me distanciar de uma metodologia de investigação vinculada às instituições universitárias. Embora mantenha algumas maneiras que desenvolvi nessa pintura, diria que agora, tento reduzir as problematizações de caracter académico para privilegiar mais as relações que me permitem desenvolver linhas discursivas e de pesquisa daquilo que eu considero necessário para manter, e manter-me, na pintura.

A.C.: Quer dizer, procura desenvolver de modo mais evidente uma pesquisa de caracter narrativo.

O.B.: Eu diria que me interessa mais o aspecto ficcional surgido quando aproximo imagens e artistas a partir de uma relação determinada. Por exemplo agora absorve-me a questão da semelhança na perspectiva colocada por Magritte na sua carta a Foucault, já que me parece extremamente adequada para entender e desenvolver alguns dos enunciados de Bacon sobre a fotografia, a arte abstracta e a sua noção de realidade. O que me permite, paralelamente, inventar ou compreender, a través do acto de pintar, as palavras de Bacon quando se refere a Picasso. Deste modo configuro uma discursividade prática e teórica em que estão implicados de um ou outro modo Magritte, Bacon e Picasso. Poder-se-á dizer que fico mais atento pictoricamente e intelectualmente perante as possibilidades de funcionamento das imagens, quer na prática da pintura quer no desenvolvimento de uma ficção teórica, mais que no seu eventual significado, sentido ou interpretação.

A.C.: Isso explica em parte o recurso à fragmentação.

O.B.: Pois é, a fragmentação é um recurso extremamente utilizado, poder-se-á dizer banal até. No entanto, eu não procuro a originalidade, de facto essa é uma questão que nem sequer me coloco. Para mim é suficiente  estabelecer uma ligação e sentir o passo de uma intensidade, de um estremecimento quando configuro as minhas pinturas em função daquela semelhança que eu acredito ver. Noutras palavras, tento configurar um possível percurso, que não é nunca linear, através da utilização dos recursos que estão a meu dispor, tentando que o seu uso se enquadre numa lógica que beneficie aquela intensidade ou estremecimento, de modo a ter, por um momento, uma certa lucidez extremamente diáfana e transparente.

Lisboa, Abril de 2004

 

 

A Política discriminatória do contorno limite

 

Augusto Carvacho (A.C.): Como é que surge um título deste tipo?

Oscar Baeza (O.B.): Foi consequência de uma serie de situações absolutamente diferentes mas que, curiosamente, convergiam todas no título, ou pelo menos nisso acreditei no momento em que o pensei. Avanço, entre outros possíveis motivos, estes dois. Em primeiro lugar, dar uma certa ideia de continuidade à investigação pictórica iniciada na exposição “Era Necessário” e, por outro lado, estabelecer uma ligação com a minha limitada – e sublinho limitada – experiência como professor de crianças. A minha actividade docente desenvolveu-se sempre no âmbito universitário, de modo que para mim foi uma verdadeira surpresa trabalhar com crianças de 8 e 9 anos. Verifiquei, então, a importância que tem para algumas delas o contorno numa pintura. Foi deveras difícil chegar a um consenso nessa mataria. A verdade é que não alcançamos consenso nenhum! Simplesmente vi-me ultrapassado pela ditadura do contorno. A partir daí, a paranoia instalou-se e, no interior de essa loucura, tive a certeza de toda uma lógica discriminatória que se verifica ou se faz mais intensa nos limites, sejam das coisas, das ideias ou das pessoas.

A.C.: Uma espécie de fundamento básico ou originário. Daí o caracter programático e, portanto, político.

O.B.: Bom, a sua ideia tem um percurso conclusivo correcto. No entanto, e sem desconhecer a pertinência da sua conclusão, prefiro salientar o funcionamento do aspecto paranoico, ou seja, uma lógica obsessiva e doentia, altamente improvável num território exclusivamente racional, mas, intensamente motivadora e potenciadora de novas pesquisas e relações. Para já, vou reler o “método paranoico-crítico” de Dalí, talvez possa reconciliar-me com o pintor surrealista.

A.C.: Penso que no seu trabalho quer prático quer teórico convergem dual linhas de abordagem, uma, digamos, académica e uma outra muito mais lúdica.

O.B.: Julgo que sim. E sendo assim, talvez o correcto seria juntar à paranoia o comportamento esquizofrénico que essa situação implica. A verdade é que quando comecei a minha actividade como professor universitário tive que articular a minha prática artística na docência, caso contrário, sentir-me-ia como um simples funcionário administrativo. Foi a partir de essa contradição – e eu acredito que existe quando se é professor de pintura e pintor ao mesmo tempo – que desenvolvi, inicialmente de modo empírico e depois de forma mais consciente, uma metodologia que pudesse estabelecer pontos em comum entre realidades que me parecem tão distantes. Isto explica a obvia influencia dos filósofos da diferença na minha orientação discursiva e também o modo como encaro a pintura contemporânea. Poder-se-á dizer que entendo que há pintura contemporânea só quando existe vontade em fazer operativa essa esquizofrenia surgida entre o saber teórico sobre a pintura, e a prática da mesma.

A.C.: Então o efeito político discriminatório pode ser entendido em duas vertentes. Uma espécie de política da discriminação positiva e outra negativa.

O.B.: Sim, sem dúvida, mas aquilo que acho necessário é posicionar-se em função daquilo que cada um de nós sentimos como vital. Deste modo, o que é positivo ou negativo depende directamente da posição que nalgum instante decidimos ocupar e também da forma de gerir os limites que pouco a puco começam por aparecer. Repare que é uma questão fundamentalmente estratégica. E nesse sentido, gosto de ver as minhas exposições como partes integrantes de um percurso, de uma viagem pela pintura fortemente influenciado pelas minhas vivências do momento.

A.C.: Mas isso não acaba por ser extremamente subjectivo? Ou seja, não estaríamos perante uma atitude manifestamente terapêutica?

O.B.: A questão é saber gerir, é saber movimentar-se nessa posição assumida. Em definitivo, depende do modo como se desenvolve uma política do contorno. Sendo um limite, o contorno é também um lugar de transição em que um hipotético interior e exterior estão próximos. Um limite deve separar, mas também deve servir de ponte de passagem. Não nego a vertente subjectiva ou terapêutica, assumo-as plenamente equilibrando-as num enquadramento metodológico ligado à investigação formal académica. Acredito que é a minha maneira de superar ou reconciliar esse factor que denominei como esquizofrénico, é um modo de dobrar o contorno de tal modo que o exterior-objectividade e o interior-subjectividade deixam de ter o sentido restritivo que carregam, é uma forma de voltar, da eventual anormalidade da paranoia, à dita normalidade da sociedade ou da história da arte.

A.C.: É, então, nesse voltar à história da arte que procura um ponto de objectividade com e para o espectador?

O.B.: Para já, não pretendo colocar significados específicos nas minhas pinturas, tão só procuro movimentar-me entre uma série de acontecimentos que despertam o meu interesse. De qualquer modo devo dizer que sinto uma imensa satisfação pela aceitação, moderada, mais constante, que tem tido as minhas pinturas e desenhos no público da galeria. Sobretudo quando penso nas pessoas que já têm nas suas coleções mais de um trabalho meu. Não tem sido fácil realizar um percurso profissional; o problema discriminatório que um contorno limite instaura é bem real. Daí que sinta um certo apreço por esses desconhecidos, uma vez que a partir desse ponto de objectividade – como você lhe chamou – configuraram uma ideia ou uma sensação que escapa totalmente à política discriminatória de um contorno limite.

Lisboa, Junho de 2005