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Salomé de Lisboa

O DESPERTAR E A CLAUSURA DO DESEJO


1. «Salomé», de Lucas Cranach




«Quero que me dês imediatamente, num prato, a cabeça de João Baptista1

É mais que evidente, para quem conhece o relato bíblico, que o momento em que esta frase foi dita não corresponde ao eleito pelo pintor alemão Lucas Cranach (1472-1553) para pintar o seu quadro «Salomé» que faz parte da colecção do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa. E, no entanto, será por estas palavras e com a violência que as mesmas desencadeiam que será para sempre identificada a personagem do relato bíblico que esta pintura representa.
«Quero que me dês imediatamente, num prato, a cabeça de João Baptista» é sim, evidentemente um enunciado, uma frase que se tem convertido numa marca de identidade absoluta e fechada em si mesma. É uma frase que não deu nenhuma hipótese de vida ao João Baptista, mas colocou a sua morte na eternidade da santidade. Para Salomé, no entanto, só resta a perpetuidade desse momento, a sua identidade fica colada, congelada nestas palavras e, uma vez que termine de proferir a frase não terá hipótese de construir a sua vida, a sua identidade. A sua vida é reduzida ao momento em que articula estas doze palavras, sendo-lhe arrebatada do seu domínio a possibilidade de configurar, por si própria, a sua estratégia de subjectivação.
Sobre esta redução, ou dizendo melhor, é «esta redução» que é pintada por Cranach. Mais ainda, qualquer pintor estava nessa época condicionado por uma política de reduções que eram operadas e sustentadas pela autoridade da Igreja nas exegeses dos textos bíblicos. Cada pincelada realizada passo a passo por um pintor contemplava esses constrangimentos e articulava-os com os procedimentos técnicos e teóricos, com os instrumentos e objectivos da sua prática disciplinar. Esse era o horizonte cultural que se perspectivava e que assumia um qualquer pintor, era esse o espaço arquitectado pelo discurso ontoteológico2, onde se desenvolviam os relacionamentos das dimensões do saber, do poder e da subjectivação3 condicionadas pelo estatuto da verdade do discurso hegemónico que ocupa o lugar da descontinuidade4. E a Salomé de Lucas Cranach é a parte material do dispositivo pictórico5 desenvolvido no acontecimento desta pintura.
Panofsky, no seu texto «Estudos de Iconologia» demonstra, de forma erudita, que uma pintura realizada pelo pintor Francesco Maffei, erroneamente identificada como uma «Salomé», era na realidade uma «Judite». Os critérios metodológicos utilizados por Panofsky são os que configuram o discurso da Iconologia. Desta maneira, o autor cumpre uma dupla intenção, por um lado resolve um enigma e, por outro, confirma a autoridade e eficácia de sua proposição discursiva. A sólida e perspicaz argumentação sustenta-se em duas premissas dadas pelo exigente trabalho de inventariação iconográfica na «história dos tipos»6. A primeira refere-se à não existência de antecedentes iconográficos (pinturas ou outro qualquer tipo de imagens) que representem a Salomé com uma espada, no entanto, existem imagens em que Judite é representada com uma bandeja7 em vez do saco que é descrito pelo relato bíblico. A segunda destas premissas faz notar que «a espada era um atributo honorífico de Judite, de muitos mártires e de virtudes tais como a Justiça, a Fortaleza, etc. e portanto, não era lógico que fosse atribuído com propriedade a uma jovem lasciva8
Este argumento lógico que assenta numa informação de estrito carácter estatístico para apresentar com autoridade e objectividade as suas conclusões, sublinha o aspecto normativo e regulador que os princípios iconográficos exerciam sobre as representações dos objectos para facilitar o reconhecimento do relato e a sua correcta interpretação. Aceitar a veracidade deste facto implica admitir, também, que o adjectivo «lasciva» atribuído a Salomé tem que ser de algum modo objectualizado na representação com suficiente clareza para evitar equívocos na apreciação da obra, ou seja, a suposta «lascividade» de Salomé deve ser representada como uma marca de identidade inquestionável. O problema desta Salomé de Lisboa pintada por Cranach é que nem toda a erudita sistematização estatística da iconologia panofskiana consegue apagar um certo desajustamento, uma certa incompatibilidade entre a personagem e as características que lhe são atribuídas. É difícil aceitar sem levantar uma qualquer dúvida ou resistência à frase de Panofsky: «não era lógico que fosse atribuído com propriedade a uma jovem lasciva». Melhor dizendo, é possível entendê-la sem necessariamente a aceitar inquestionavelmente. É evidente e compreensível essa suposta «lógica» que impera no uso iconográfico das imagens, dada a existência de um sistema discursivo controlador e de verificação hegemónico na época da realização desta pintura. Já é bastante mais complicado aceitar uma norma com o mesmo grau de equivalência representativa, entre o objecto «espada» e o adjectivo «lasciva», uma vez que pertencem a níveis diferentes. A atribuição de valores a um objecto envolve uma operação eminentemente indicativa que procura a concretização de um esquema mínimo. Esquema mínimo no sentido de possibilitar o seu rápido reconhecimento pelo que os elementos plásticos não são de todo relevantes na sua configuração. Situação diferente no caso da «tradutibilidade» das qualidades ou sensações que podem, eventualmente ser simbolizadas. Nomeadamente, é a função que deve cumprir a alegoria, no entanto, para que a alegoria funcione em plenitude requer um sujeito privilegiado. Privilegiado porque está investido de um saber que autoriza a correcta interpretação dos objectos que configuram a imagem alegórica, ou seja, o que realmente faz este sujeito privilegiado é verificar a presença dos objectos que foram estipulados para a representação de uma determinada qualidade, por outras palavras, verifica e controla a presença do esquema mínimo de representação. Numa perspectiva foucaultiana, é o saber, o «arquivo», a ser utilizado com poder e em função do poder. Mas a diferença que se apontava em relação com a «tradutibilidade» das qualidades tem que ver principalmente com os elementos plásticos configuradores da representação, dado que é extremamente difícil deixar, num plano secundário, os elementos técnicos e as manipulações dos elementos plásticos, os quais são primeiramente qualidades e não formas. Pelo que se introduz, na eficácia da alegoria, um aspecto de carácter estilístico ou uma «função-autor» própria das normas disciplinares que pode minar a correcta interpretação do relato afectando a autoridade do discurso hegemónico. Daí, a necessidade da «criação» de um sujeito privilegiado na alegoria, o qual apaga ou põe num nível secundário os procedimentos técnicos e reconduz qualquer desvio que estes elementos propiciavam na norma de interpretação autorizada. Neste sentido, ainda que o texto «Iconología» (1593) de Cesare Ripa tenha sido publicado aproximadamente 82 anos depois desta representação pictórica, serve para perceber as teorizações que, com toda probabilidade, circulavam na época de Cranach, uma vez que é o próprio Ripa quem diz haver realizado uma exaustiva recolha de informação a partir de textos da Antiguidade. Para o termo de «lascívia» descreve-se com precisão a forma como deve ser representada indicando até a presença de animais: «poniéndose a su lado unos pocos gorriones, aves muy lascivas y lujuriosas»9. No entanto, pelas características do relato bíblico é impossível incorporar todas as indicações estipuladas no texto: «Mujer muy joven y ricamente vestida que sostiene un espejo (…) Con la diestra ha de estar maquillandose el rostro»10. Numa outra descrição, Ripa indica: «Mujer que va ataviada al modo de los bárbaros, y que con uno de sus dedos ha de estarse rascando la cara suavemente»11. Pela necessidade de representar o prato (ou bandeja) com a cabeça decapitada de João Baptista nas mãos da Salomé torna-se impraticável cumprir todas estas normas de representação. Mas é o próprio texto de Ripa que introduz ambiguidades normativas, uma vez que descreve a jovem que representa a lascívia com vestimentas opostas: «ricamente vestida» numa e: «ataviada al modo de los bárbaros» noutra. Se, na tentativa de estabilizar o esquema de representação para o termo lascívia se procurar termos equivalentes como o de «luxúria», encontra-se a seguinte descrição: «Irá casi desnuda (…) Será hermosa a la vista, apareciendo sentada sobre un cocodrilo»12. Comprova-se, assim, a impossibilidade em alcançar para o adjectivo de «lasciva» o mesmo grau de efectividade, de «lógica», que o objecto «espada» conseguiu para os termos de «justiça» ou «fortaleza». Conclui-se, deste modo, que a redução operada sobre o acontecimento em que Salomé participa, e no qual é fixada por termos como o de lascívia responde a uma intenção premeditada que o sujeito privilegiado deve controlar.
Aceitar, portanto, esta lógica sustentada numa impecável estatística que pretende dissimular a sua evidente eficácia intimidante para reforçar a sua postura de objectividade, não é evidentemente nada fácil em relação a esta representação de Salomé. Também, parece ser bastante questionável a viabilidade da realização de uma catalogação tendo por base um hipotético inquérito e a sua posterior sistematização estatística13. Obviamente que a iconologia não faz este tipo de trabalho, pelo contrário, tem o cuidado suficiente para reconhecer que não pretende fazer juízos de valor artístico, limitando-se a estabelecer as condições originárias que envolvem uma qualquer obra artística, daí a sua proposta de três princípios «controladores da interpretação»
Temos pois a certeza, graças a Panofsky, que esta pintura de Cranach é efectivamente uma representação de Salomé dado que a personagem não tem uma espada, no entanto, e já em relação ao atributo de lasciva, adjectivo de clara conotação do âmbito dos valores, não se afirmará com tanta rapidez a sua atribuição a esta interessante e inquietante representação pictórica, que o pintor alemão Lucas Cranach realizou nos anos de 1509 a 1510.
Esta chamada de atenção na dificuldade que implica normalizar uma qualidade e, ao mesmo tempo, velar pela sua aceitação, não implica, de modo nenhum, deixar à técnica dos pintores, à pintura, toda a responsabilidade pelas representações das qualidades dado que da perspectiva do discurso hegemónico seria correr um risco, seria promover um certo desvio na leitura do relato e das suas exemplares consequências. Só é possível entregar essa responsabilidade à condição de uma capitulação disciplinar, isto é, reconhecendo previamente o predomínio da hierarquia do significado, do sentido, sobre a técnica ou o estilo. As qualidades, as sensações não são fiáveis para o discurso ontoteológico, só o logos, a razão ou a fé, possibilita o acesso à verdade. As modificações dos modos e/ou maneiras nos mecanismos e nas práticas disciplinares são sempre secundárias e derivadas para este discurso.
Esta capitulação frente à interpelação deste discurso com pretensões hegemónicas, que teve a capacidade de ocupar o espaço da descontinuidade e assim condicionar as formas de relacionamento das três dimensões foucaultianas, é o «logocentrismo», o «fonocetrismo» derridiano com a sua extensão na dicotomia de «presença – ausência» que exerce o seu poder sobre a pintura. Mas a capitulação continha também o seu componente político, uma vez que assegurou a continuidade, a viabilidade e a sobrevivência da disciplina, pelo que é lícito encontrar no dispositivo pictórico os rastos de um desejo, de uma ânsia de abertura que transborde os limites impostos pelo «Sentido» estipulado e normalizado pelo discurso hegemónico. Por outras palavras, no dispositivo pictórico verificam-se os ruídos que a intensidade desse desejo provoca na sua constante vontade em não sucumbir na clausura de um só e único significado. Pelo contrário, é o desejo que produz significados e abre a possibilidade de múltiplos sentidos. O desejo é um movimento constante, maquinal diz Deleuze, que provoca sempre novos relacionamentos, e o significado ou os significados são secundários nesta lógica do desejo.14
A indicação das diferentes linhas que operam em níveis distintos de densidade e intensidade do dispositivo pictórico que envolve a representação da Salomé de Lisboa de Lucas Cranach permite uma primeira aproximação na pesquisa das manifestações que envolvem todo o acontecimento da pintura. Ou seja, como uma primeira prioridade de estudo em relação às manifestações que circulam e operam no dispositivo pictórico indicam-se e sublinham-se esses momentos de densidade ou intensidade com o fim de suspender momentaneamente o automatismo na interpretação desta pintura, para assim indicar zonas de vertigem em que a interpretação não responde com a clareza que o discurso dominante quisera fazer ver. E esta interessante representação de Salomé leva a cabo de forma sistemática uma série de rupturas na continuidade, na unidade, desse discurso.

«Quero que me dês imediatamente, num prato, a cabeça de João Baptista» repetir novamente esta frase é voltar a posicionar a imagem do quadro de Cranach no centro de atenção. É tentar ligar a determinação que essa frase evidencia com a imagem desta jovem que representa Salomé. E não é uma tarefa fácil, pois a pintura de Cranach já deixava entrever um certo princípio de incerteza em relação à pertinência do adjectivo «lasciva» de um ponto de vista eminentemente iconográfico, mas uma outra discrepância acontece relativamente à determinação com que foi pronunciada essa frase e a imagem desta jovem. A determinação e a brutalidade que a frase desencadeara não condiz, na sua totalidade, com a imagem desta representação de Salomé. Há nesta cativante representação a emergência de espaços que dão lugar, mais ou menos de forma sistemática, ao ruído, a uma qualquer interferência que desenquadra a focagem preconcebida pelas informações conhecidas das qualidades que deve ter uma Salomé. O efeito progressivo de uma consciencialização que termos como «lasciva», «pérfida», «luxuriosa», «sensual» devem provocar na lógica de adequação entre a nomeação: «Salomé», e uma qualquer imagem feminina não se cumpre totalmente, nesta representação de Cranach, e deste modo, o significado não se fecha, não é de todo unitário e inequívoco nesta pintura.
A visão de uma Salomé que se identifica com estas qualidades corresponde com o discurso dominante da Idade Media até os nossos dias:
S. Jerónimo ao retomar o episódio centrado-o ainda em Herodíades, que ele diz ter furado com um estilete a língua do santo decapitado. Mas a significativa fortuna textual e iconográfica que vai prolongar o episódio até aos dias de hoje acaba por ir deslocando, da mãe para a filha, o protagonismo da cena. Desde a Idade Media, cresce a ideia de uma princesa sensual. (…) A magnífica peça de Lucas Cranach que nos é oferecida pelo Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa parece, no realismo nórdico da sua execução (na perversidade evidente que transmite o olhar da donzela, desviado do nosso, e na agonia do olhar morto de João, coincidindo com o nosso…), aproximar-se já de leituras mais modernas. Mas essa perversidade é insinuada a através da própria Beleza que (no seu corpo, gesto e rosto, ou mais ainda no seu vestuário sumptuoso) a jovem materializa.15

Esta interpretação aqui apontada da Salomé de Cranach do Museu Nacional da Arte Antiga de Lisboa, responde eficazmente ao modo como deve ser entendida uma qualquer representação de Salomé. Uma vez mais, nota-se o evidente automatismo que este discurso hegemónico introduziu no conhecimento de carácter enciclopédico. Esta caracterização, aceite como a adequada, tem sido explorada até à exaustão pela modernidade em representações pictóricas, óperas e literatura. Nestas, a Salomé apenas seria uma espécie de protótipo da «femme fatale» à «Lolita» de Nabokov. O que talvez seja correcto para muitas representações de Salomé, incluindo as outras versões que o mesmo Cranach pintou, mas para esta versão do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa deverá ser alvo de um momento de atenção antes de se reproduzir o discurso já estandardizado.
Nos textos dos evangelhos que descrevem o acontecimento da decapitação de João Baptista relatam-se uma série de situações que culminaram com o pedido de Salomé e, curiosamente, esta representação de Cranach tem muito mais a ver com o relato bíblico, qualquer que seja o evangelho que se consulte, o de S. Marcos ou o de S. Mateus, do que com a identidade atribuída e fixada pelas interpretações dos mesmos. Efectivamente, a determinação e a segurança que este enunciado indica não existiu na série de acontecimentos que lhe deram origem. Ao fazer a leitura da descrição dos factos prévios ao momento em que esta frase será proferida, quer dizer, ao organizarem-se os tempos do relato de um modo literário; linear e contínuo, percebem-se alguns dos porquês dos desvios, dos ruídos, que esta representação introduz no discurso hegemónico apesar da extrema precisão técnica com que o pintor quer assegurar a ideia de unidade ou de lineriadidade do acontecimento.
Salomé, filha adolescente de Herodíades que é a mulher de Filipe, irmão de Heródes, acaba de terminar a sua dança perante este último e os seus convidados, está exausta pelo esforço físico que, ao manifestar-se no corpo da formosa jovem, mais atrai os homens que a observam. Ela, adolescente ainda, não é, de todo, consciente do poder do seu corpo feminino, pensando inocentemente, que a graça da sua dança é a causa exclusiva de tanto alvoroço; não sabe, ou ainda não quer aceitar que seu corpo desperta o desejo em Heródes e nos seus convidados. Também não compreende o oferecimento do Rei: «Pede-me o que quiseres e eu to darei»16, e fica ainda mais confundida quando, por uma simples dança, Heródes promete: «Dar-te-ei tudo o que me pedires, mesmo que seja metade do meu reino»17.
Salomé, corre à sua mãe e pergunta: «Que hei-de pedir18, quisera formular outras perguntas, mas não se atreve, tem medo. Não compreende o que sucede, mas intui-o. Salomé descobre o poder do seu corpo e tem um sentimento contraditório entre a vaidade e o temor, num ápice perante uma multidão, num espaço público, percebe o mais íntimo que pode conter o seu corpo, a sua sexualidade.
Quando Herodíades dá sua resposta, Salomé, já não é e, nunca mais será, a mesma.
O dispositivo pictórico que o pintor alemão, amigo de Lutero, põe em acção ressalta do pincel que sustenta a sua mão, mão que é conduzida pelas dimensões do saber, do poder e da subjectivação. Quando Cranach pinta, pinta o que vê, o que sente, o que sabe e o que crê. «Não há um olhar inocente».
Salomé é representada nesta pintura por uma jovem de meio corpo que olha à esquerda do espectador, não há indícios suficientes como para saber se está de pé ou sentada, informação que poderia ter alguma utilidade num plano iconográfico já que quando Ripa descreve o adjectivo «libidinosa», entre outras características, indica as seguintes:
Mujer hermosa y con la tez muy blanca, que tendrá los cabellos muy crecidos y negros, recogidos por la parte superior de la cabeza y suelto junto a las sienes, pintándosele además unos ojos de gran tamaño, relucientes y lascivos. (…) Está sentada y apoyada sobre el brazo para mostrar su ocio, con el cual se fomentan en gran parte el deseo y la libidinosidad, de acuerdo al dicho que reza: Si suprimes el ocio, quedan destruidos los arcos de Cupido.19

O rosto não está nem de frente nem de perfil, apresenta-se como a tradição instituiu para o retrato, quer dizer: a três quartos. Está aqui uma primeira informação que é possível estudar e comparar, na medida em que esta pintura, se não fosse pela representação da cabeça decapitada, seria evidentemente um retrato de mais uma qualquer dama cortesã da época.
Sobre a redução operada pelo «sujeito privilegiado» do acontecimento narrado na Bíblia, o dispositivo pictórico desta representação contrapõe, agudamente, uma outra redução.
Do momento em que começam a ser representados os acontecimentos, e principalmente os acontecimentos narrados no Novo Testamento, coloca-se o seguinte problema para a pintura: Como representar um relato?
É pertinente fazer algumas considerações em relação ao relato. O dicionário de “Términos Literários Akal” apresenta as seguintes designações. O relato para Bremond é: «un discurso que integra una sucesión de acontecimientos de interés humano en la unidad de una misma acción»20, para Genette: «Es la representación de un acontecimiento o de una serie de acontecimientos reales o ficticios, por medio del lenguaje y más particularmente del lenguaje escrito.»21 Genette indica também uma diferença entre um relato objectivo, em que ninguém fala, e um discurso subjectivo em que o eu enuncia.
Este mesmo dicionário apresenta uma outra informação de interesse:
El relato es la historia tal como se manifiesta en el discurso narrativo. Los acontecimientos forman parte del relato, las circunstancias que lo rodean y las descripciones pertenecen al discurso. Su rasgo esencial radica en la doble temporalidad (presente en la acción y la narración).22

Tecnicamente já existiam respostas disciplinares que resolviam a questão do modo como representar esta duplicação: a organização do tempo e também do espaço do evento relatado que sucede num lugar e numa determinada duração e, o seu relato: a acção de contar ou de representar que acontece por sua vez num momento e lugar específicos. Exemplo da forma como se resolvia esse problema são as pinturas de Filippo Lippi e de Benezzo Gozzoli: os dois representam a história de Salomé através de uma sequência de imagens que ilustram, simultaneamente23, diversos momentos do relato. Utilizando uma designação de Arnheim poder-se-ia indicar este processo como imagens sequenciais imóveis. Quer dizer, Salomé é representada três vezes no mesmo espaço de representação, tentando com isso mostrar o decorrer dos acontecimentos. Este tipo de estratégia tem um princípio e um fim, pretendendo fixar desta forma a temporalidade, dimensão inerente e constituinte do relato.
Outra forma muito utilizada era a representação de um momento que equivalia à totalidade do relato, ou seja, a eleição de um suposto instante decisivo24 que permitia a compreensão de todo o relato. Este modo, provavelmente inspirado nas representações teatrais contém um claro componente declamativo ou expressivo, de um grau variável, mas não pode excluir-se a presença de um gesto ou atitude mínima que condicione o espectador. Representações deste tipo são, por exemplo, as Salomé de Guido Reni e de Tiziano que representam numa única imagem o relato bíblico. A Salomé de Reni oferece num gesto autoritário a cabeça de João Baptista. Tiziano representa a Salomé equilibrando o prato com a cabeça de Baptista sobre a sua como se um passo de dança efectuasse. Estas duas representações assumem e confirmam os adjectivos associados, pela interpretação estandardizada do relato bíblico, à filha adolescente de Herodíades.
Nada disto está presente nesta representação de Salomé pintada por Lucas Cranach: a contenção é total, a redução operada no dispositivo pictórico como resposta à política de reduções do discurso dominante consiste em suspender a temporalidade do acontecimento, descolando-se dos sucessivos tempos da narração e separando dos factos a série de momentos de enunciação. Por outras palavras, «tematiza» os momentos de enunciação e abre a possibilidade da sua discussão. Um retrato é, principalmente, um tema. A representação da temporalidade compreendida como a figuração de sucessivos acontecimentos é suspendida oferecendo-se a probabilidade da actualização dos momentos de enunciação, tanto os que pertencem ao relato como os que se produzem no relato do relato, é uma deslocação da enunciação ao enunciado. Esta representação de Salomé é um convite à confrontação, não estando somente em causa saber qual é a melhor estratégia para a representação de um relato, como acontecia nas outras pinturas aqui assinaladas; nesta pintura o que se joga, o que se propõe à discussão é a veracidade, a hegemonia do discurso dominante, que condicionou e fixou a identidade da jovem adolescente que dançou perante Heródes a uma cabeça decapitada, discutindo-se em definitivo a propriedade, o dono, em suma, o verdadeiro executor da decapitação. Todo o acontecimento bíblico é reduzido à sua máxima tematização: o retrato da jovem e o retrato da cabeça decapitada do santo.
Jean-Luc Nancy avança no seu texto «Le Regard du Portrait» uma definição para retrato:
Un tableau s’organise autour d’une figure en tant que celle-ci est proprement en elle-même la fin de la représentation, à l’exclusion de toute autre scène ou rapport, de toute autre valeur ou enjeu de représentation, d’évocation ou de signification.25

E mais adiante especifica: «le personnage représenté n’est pris dans aucune action ni même ne supporte aucune expression qui détourne de sa personne elle-même. On pourrait dire: le portrait autonome doit être – et faire – l’impression d’un sujet sans expression.»26

Deslocar o motivo da representação dos acontecimentos para a tematização dos mesmos é provocar uma precipitação da dispersão, é configurar uma territorialização para realizar uma operação de desterritorialização, é provocar ou acentuar a operação de desvio no interior da própria linguagem, por isso se fala de «precipitação da dispersão»27, é precipitar-se numa determinada construção discursiva para «a partir» daí indicar, descobrir ou acentuar os desvios da mesma.
Um retrato é um tema, é a tematização de um rosto. E é na absoluta exterioridade do rosto que se deve apresentar o ser, a identidade e a interioridade de uma pessoa. Os retratos, portanto, os rostos de Salomé e de João Baptista são suas formas da presença das suas respectivas identidades, são duas formas de «rostidade».
Rostidade é na perspectiva de Deleuze e Guattari o resultado de uma necessidade que impõe a «significância» e a «subjectivação»: «Mas a significância não existe sem um muro branco sobre o qual inscreve seus signos e suas redundâncias. A subjectivação não existe sem um buraco negro onde aloja sua consciência, sua paixão, suas redundâncias28 A rostidade seria uma qualidade ou tipo de rosto que é determinado por:
uma máquina abstrata de rostidade, que irá produzi-los ao mesmo tempo que der ao significante seu muro branco, à subjectividade seu buraco negro. O sistema buraco negro-muro branco não seria então já um rosto, seria a máquina abstrata que o produz, segundo as combinações deformáveis de suas engrenagens.29

E a produção de um rosto, de uma determinada rostidade, tem que ver com o poder, com a necessidade de uma imposição que um determinado discurso precisa para impor sua visão:
O que conta não é a individualidade do rosto, mas a eficácia da cifração que ele permite operar, e em quais casos. Não é questão de ideologia, mas de economia e de organização de poder. Não dizemos certamente que o rosto, a potência do rosto, engendra o poder e o explica. Em contrapartida, determinados agenciamentos de poder têm necessidade de produção de rosto, outros não.30

Ao suspender a maquinal atribuição das qualidades que o discurso hegemónico associou ao nome de Salomé vislumbra-se a possibilidade de perceber a dificuldade dessa atribuição, pois esta representação não aceita esse comportamento maquinal, o rosto da jovem, a sua rostidade, por mais que se procure não reflecte expressividade alguma, os seus olhos, sim, é verdade, não olham o espectador mas inferir daí uma atitude «perversa» parece excessivo, para mais quando estão simetricamente alinhados com a direcção do corpo. Cabeça, olhos, ombros, torso, enfim, todo o corpo forma uma única posição num só bloco que impede qualquer possibilidade de articulação entre as partes constituintes do corpo, esta figura não pode realizar gesto algum que indique a conceptualização de uma operação alegórica ou de subjectivação. A pergunta que surge perante tão monolítica figura é: Como conseguiu, em algum momento, esta personagem realizar uma dança que provocou tão apaixonadas e fatais consequências?
Deleuze e Guattari apontam a seguinte ideia:
Os rostos não são primeiramente individuais, eles definem zonas de frequência ou de probabilidade, delimitam um campo que neutraliza antecipadamente as expressões e conexões rebeldes às significações conformes. Do mesmo modo, a forma da subjectividade, consciência ou paixão, permaneceria absolutamente vazia se os rostos não formassem lugares de ressonância que selecionam o real mental ou sentido, tornando-o antecipadamente conforme a uma realidade dominante.31

A diferença dos dois rostos retratados é incomensurável, o de Salomé completamente bloqueado, quer dizer impossibilitado de expressão seja de índole expressiva ou inexpressiva (a inexpressividade é, de qualquer modo, um tipo de expressão), tem totalmente suspensas as probabilidades de relacionamentos entre os «traços, as linhas, as rugas do rosto»32. A cabeça decapitada de João Baptista é ao contrário palpitante e expressiva.
A cabeça decapitada tem mais vida que o rosto morto da jovem? Pergunta, indicio, apelo… ou na realidade uma cilada?
É fácil associar-se ao movimento maquinal do discurso dominante e interpretar esta confrontação na linha definida e controlada por esse discurso, é fácil interpretar quando a interpretação não é mais que um eco, uma reprodução e repetição do que já está previamente estabelecido. Como é fácil, também, contrapor a uma monolítica interpretação o seu oposto. A confrontação não se resolve numa sucessiva série de interpretações que se excluem mutuamente; ao dispositivo pictórico não lhe compete defender uma determinada interpretação, a sua função é a de indicar os lugares de densidade ou de intensidade que surgem num determinado momento do acontecimento da pintura para verificar as condições de possibilidade da interpretação. Em definitivo, usa as interpretações, configura-as numa longa cadeia em que afirma: é esta e aquela, e também essa outra. De modo que seja possível deslocar a atenção das interpretações às condições de possibilidade destas, as que exemplificam os diversos modos de relacionamento que as dimensões do saber, do poder e da subjectivação estabelecem.
A rostidade da cabeça decapitada do morto é mais «viva» que a rostidade da Salomé só se aceitam a priori a veracidade das normas do discurso ontoteológico, por outras palavras, aceita-se a identidade como uma estrutura já dada e que é redescoberta através de uma vida de sacrifício e de dor, fielmente representada nesta pintura pela cabeça decapitada.
Panofsky dá uma informação de utilidade: «Durante os séculos XIV e XV, a bandeja com a cabeça de São J. Baptista tinha-se transformado numa imagem isolada de devoção (Andachtsbild) muito popular, especialmente nos países do norte; tinha-se separado da representação da história de Salomé.»33. O prato converteu-se no suporte, no corpo desta cabeça e os seus contornos cumprem a função de um marco. É interessante apontar uma definição de marco que um dicionário técnico oferece: «Marco: En el análisis del relato, es aquella parte del texto narrativo que encierra, como un engaste, una narración de segundo grado.»34 Ou seja, confirma-se a tematização operada no dispositivo pictórico desta representação. A cabeça decapitada do santo sofre uma segunda «decapitação», a do momento da sua enunciação para ser colocada como exemplo de subjectivação. A rostidade, a necessidade de rosto é um imperativo do poder (veja-se as notas 28 e 29).
O rosto só se produz quando a cabeça deixa de fazer parte do corpo, quando pára de ser codificada pelo corpo, quando ela mesma pára de ter um código corporal polívoco multidimensional – quando o corpo, incluindo a cabeça, se encontra descodificado e deve ser sobrecodificado por algo que denominaremos Rosto.35

O rosto do santo só tem mais vida porque tem mais rosto, na perspectiva apontada por Deleuze e Guattari, porque está sobrecodificado, porque foi decapitado da possibilidade de um «código corporal multidimensional»36 e é articulado a um «corpus doutrinário» que lhe confere e assegura a eternidade. Mas, apesar da ausência do resto do corpo, ausência necessária e provocada pelo discurso dominante: «a bandeja com a cabeça de São J. Baptista tinha-se transformado numa imagem isolada de devoção» para instituir a promessa da recuperação da unidade do corpo na eternidade. Esta imagem é, antes de tudo, uma imagem da morte, por muito que se procure subtrair, esconder o resto do corpo, esta cabeça deve ser vista, também, simplesmente como um cadáver. Imagem da morte e imagem de morte do desejo que todo o corpo enquanto vivo pode usufruir para, facultativamente, elaborar a sua própria estratégia de subjectivação. O desejo deve ser organizado, controlado em função da promessa da eternidade, dá-se a imortalidade a troco da adopção dos critérios do saber, do poder e da subjectivação que um determinado discurso quer e pode fazer valer. Todo o desvio será castigado.
Uma coisa é, no entanto, indiscutível: a imagem de uma cabeça decapitada permite ser convertida facilmente num esquema para logo lhe atribuir uma série de significados, por outras palavras, por ser uma imagem suficientemente fácil de identificar serve de ilustração privilegiada a qualquer discurso que pretenda veicular um determinado significado. O retrato, no entanto, parece ser o seu contrário, dir-se-á, que é um lugar vazio, oco, que requer constantemente ser preenchido, é um espaço, um ponto fugaz de distensão que precede os relacionamentos. Nancy descreve-o de forma perspicaz:
le portrait peint l’exposition. C’est-à-dire qu’il la met en oeuvre. Mais l’«oeuvre», ici, n’est pas la chose ou l’objet «tableau». L’oeuvre est le tableau en tant que rapport. En ce sens, le sujet est l’oeuvre du portrait, et c’est dans oeuvre qu’íl se trouve ou qu’il se perd.37

O retrato da cabeça decapitada do santo que, por sua vez, é um relato, um discurso, enquadrado pelo rebordo do prato, corre o sério risco de se precipitar na vertigem que se desencadeia no pôr em cena a redução operada pelo dispositivo pictórico dos acontecimentos em que Salomé tomou parte, é um quadro dentro de um quadro, confrontando as suas respectivas tematizações. A densidade simbólica da imagem decapitada coloca-se numa posição de fragilidade, na qual, pode ser encontrada como perdida no processo da produção do sujeito retratado (Salomé), literalmente está «nas mãos do retrato de Salomé» confirmar o seu estatuto.
Existe uma correspondência, uma equivalência, na transformação da cabeça decapitada de São J. Baptista numa imagem de devoção e esta redução, num retrato, de todo o acontecimento narrado na Bíblia. As devoções precisam de exemplos, precisam de uma imaginária didáctica que cumpra uma função reguladora, que vele pela sua correcta interpretação e assegure a continuidade do objecto de culto38. A eleição de um tema menor no interior das normas disciplinares, como é o retrato, procura a sua assimilação rápida e directa, investindo numa estratégia de subjectivação, na qual, o espectador possa identificar-se ou reconhecer-se com as qualidades atribuídas pelo discurso hegemónico à personagem retratada.
Se a Salomé de Lisboa, não confirma, não corrobora, na sua rostidade os adjectivos que o discurso hegemónico lhe indicou, quer dizer, se o retrato não proporciona indícios de uma determinada política de subjectivação, de uma humanidade condicionada que oriente e facilite no espectador projecções que possibilitem uma identificação com a personagem, talvez a sua riquíssima e elegante vestimenta expresse indirectamente os atributos que a interpretação dominante procura fazer crer: «Mas essa perversidade é insinuada através da própria Beleza que (no seu corpo, gesto e rosto, ou mais ainda no seu vestuário sumptuoso) a jovem materializa.»39. No entanto, ver-se-á que não é assim, e se apresenta novamente uma interferência, um possível caminho para o desvio da norma de interpretação estandardizada.
Salomé: «veste à moda do séc. XVI . Traje de veludo preto e manto brocado, delineado com parte de pele de marta que cobre a cabeça»40, esta descrição detalhada das roupas de Salomé foi possível pela eximia técnica do pintor, que pormenorizadamente se dedicou às descrições de aspectos que não formam parte do relato, de acordo com a definição do relato já avançada (veja-se as notas 20, 21 e 22). Pode-se afirmar, então, que esta atitude descritiva não pertence ao relato dos acontecimentos bíblicos, é uma parte circunstancial e provavelmente interessada, que é própria de um outro discurso «Los acontecimientos forman parte del relato, las circunstancias que lo rodean y las descripciones pertenecen al discurso»41, quer dizer, que a técnica, o virtuosismo do pintor sobre os elementos propriamente específicos da prática disciplinar (os elementos plásticos) são uma interferência de enunciação de índole disciplinar. Competência disciplinar que, como já foi indicado, devia ser secundária relativamente às directrizes e as tematizações do discurso hegemónico. No entanto, em termos estritamente iconográficos, esta representação cumpre só uma mínima parte do esquema assinalado para os termos de «lasciva», «luxuriosa» ou «libidinosa», primeiramente por uma questão de impraticabilidade relativamente às exigências do próprio relato bíblico: o prato com a cabeça decapitada deve figurar nalgum lugar da representação e nada melhor que ocupar as mãos da jovem, deixando fora da representação sinais como «con uno de sus dedos ha de estarse rascando la cara suavemente (…) que sostiene un espejo con la siniestra, observándose en él atentamente. Con la diestra ha de estar maquillándose el rostro»42 e também não se apresentam, acentuando a discrepância relativamente ao discurso iconográfico de Cesare Ripa, uma série de representações de animais: «a su lado unos pocos gorriones, aves muy lascivas y lujuriosas»… «Será hermosa a la vista, apareciendo sentada sobre un cocodrilo, llevando entre las manos sujeta una perdiz a la que está acariciando».43 Há toda uma iconografia claramente detalhada no texto de Ripa que esta representação não assume.
Tudo se concentraria na presença da cabeça decapitada e na «leitura» que estabelece e autoriza um «sujeito privilegiado», as únicas indicações que fazem parte das formulações iconográficas apresentadas nesta representação são as que dizem respeito a uma «mujer joven y ricamente vestida»44 informação demasiado genérica que limita uma suposta eficácia representativa, sobretudo ao nível das imagens, para reconhecer de forma inquestionável o adjectivo de «lasciva» atribuído a Salomé. Dificuldade que se aprofunda ainda mais relativamente às cores empregues na representação da vestimenta da jovem onde só na luxúria se encontram indicações concretas: «Una joven que lleva muy rizados cabellos que han de estar además artificiosamente ondulados. Irá casi desnuda, mas el paño con que cubre sus partes habrá de estar compuesto de diversos colores45
O texto de Ripa serve para configurar, ainda que de um modo fragmentário, o espaço disciplinar no qual deviam fazer parte das discussões a forma e as técnicas de representação de estas ou outras características, de outro modo, a publicação de um livro com as características do texto de Ripa não teria sentido, como também não teria tido o sucesso que alcançou no ano de sua publicação. Mas, nem sequer uma representação fragmentária das qualidades atribuídas a Salomé se encontram nesta pintura, acentuando deste modo, a «mise en abîme» da interpretação veiculada pelo sujeito privilegiado e promovendo, paralelamente, a pormenorizada técnica descritiva dos factores circunstanciais ao relato bíblico a um nível de importância que tanto pode servir como interferir no discurso estandardizado. Entre o campo das normas e o âmbito da técnica só se mantém um princípio de regularidade, a «mise en abîme».
Este distanciamento relativamente ao discurso hegemónico é parte constitutiva desta representação, não é um acidente ou uma falha na eleição das técnicas e dos mecanismos de produção da imagem, devendo-se reconhecer esta especificidade nesta representação como uma rarefacção discursiva. O dispositivo pictórico desta pintura coloca-se numa posição de evidente ambiguidade, seria excessivo talvez falar de ironia, mas os reiterados indícios de distanciamento e diluição do discurso dominante não excluem, pelo menos, uma aproximação irónica às interpretações do relato bíblico. No entanto, esta representação não é um outro discurso, procura desde o interior do discurso dominante estabelecer zonas de desvio, realizar «precipitações da dispersão», de modo que se permitam fluxos de maneiras distintas de interpretar o papel que a jovem adolescente teve no desenrolar dos acontecimentos relatados na Bíblia.
Salomé é pintada por Lucas Cranach tendo em conta os objectivos da disciplina, cumpre satisfatoriamente os conhecimentos técnicos adquiridos e transmitidos pelas normas disciplinares, por outras palavras, a partir ou do interior do próprio acontecimento da pintura configura uma representação que introduz sinais de aparentes contramanifestações aos constrangimentos discursivos. A Salomé de Lisboa, sim, veste à moda do seu século um elegante «traje de veludo preto», cobre a sua cabeça e os seus ombros com uma «pele de marta». Mas nem o esmero descritivo na técnica pictórica, nem a elegância e riqueza destas vestimentas explicam, por si só, pela sua manifesta presença, a suposta «perversidade» da jovem. Estas vestimentas têm que ser vestidas de uma certa maneira que procure consolidar sistematicamente as atribuições do discurso estandardizado, ou seja, a jovem «perversa» deve vestir «perversamente» as suas roupas. Portanto, o rosto e o corpo da jovem deveriam indicar, com gestos ou pela sua presença física, pela sua carnalidade, uma qualquer ideia de perversidade:
A máquina de rostidade não é um anexo do significante e do sujeito, ela lhes é, antes, conexa e condicionante: as biunivocidades, as binariedades de rosto duplicam as outras, as redundâncias de rosto fazem redundância com as redundâncias significantes e subjectivas.46

Mas viu-se que a rostidade deste retrato é oca, está suspensa, e o corpo não é mais que um só bloco carente de qualquer gesto que confirme pressupostos da significação ou da subjectivação autorizados pelo discurso hegemónico. O traje de veludo preto, como a totalidade das vestimentas, cobre praticamente a totalidade da pele desta jovem, a nudez da pele só é visível na mão esquerda, no rosto e parte do pescoço e do peito. Na realidade, as vestimentas da jovem não têm como função realçar a presença de um corpo «perverso» ou de um corpo que indique uma outra qualquer conotação, pelo contrário, tudo parece indicar que sua função é a de ocultar, apagar qualquer rasto de corporeidade da jovem, suprimir da representação qualquer referência ao jovem corpo da adolescente. Mais ainda, tanto o traje de veludo preto como a pele de marta, que cobre os seus ombros, rompem a continuidade visual entre a cabeça da jovem e o resto do seu corpo, quer dizer, é impossível constatar visualmente, por exemplo, a efectiva articulação do ombro da jovem com o seu extenso braço esquerdo, só se recuperando a continuidade visual a partir do cotovelo à mão. Pormenor mais que interessante uma vez que na pintura tudo nasce do que se vê. Talvez seja possível explicar a inaudita extensão da totalidade deste membro através de uma deformação estilística47, os textos de história da arte classificam Cranach como um pintor maneirista, os quais sabemos, pela mesma história, gostam de estilizar as suas figuras na intenção de as dotar de expressão procurando incentivar o jogo de curva e contra curva. Mas então porque no corpo desta jovem está ausente esse trabalho estilístico? Porquê esta rostidade bloqueada, oca e carente de qualquer sinal dos processos de subjectivação sejam eles impostos pelo discurso hegemónico, ou facultativos?
Cranach pinta esta representação de Salomé descolando-a dos acontecimentos e convertendo-a num retrato, veste-a com elegantes roupas, mas o aspecto interessante das vestimentas não está no que elas outorgam ou vestem, mas sim, no que elas desvestem, não há rasto, sinal ou gesto que indique a palpitante actividade que este corpo jovem foi capaz de realizar. A humanidade deste corpo adolescente foi congelada, ocultada, por estas riquíssimas vestimentas. Repara-se então, que a jovem aqui retratada, mais que vestida foi na realidade disfarçada, investida de mulher, isto é, disfarçada da consciência do poder sexual do seu corpo e do conhecimento no uso das vestimentas e das jóias nos processos da sedução. Consciência ou experiência própria de uma mulher, como Herodíades, como Judite ou como qualquer mulher da época de Cranach, mas não de uma adolescente, como Salomé.
As ricas vestimentas são um disfarce que pretende ocultar a simples humanidade de um corpo jovem, apagar a sua infinita possibilidade de configurar um «código corporal multidimensional» mostrando e indicando uma única alternativa, a de uma mulher consciente de sua sexualidade e sensualidade. O disfarce fixa a personagem, através de uma operação de indicação irredutível, num determinado papel e função. Mas nesse supremo intento por figurar um só e exclusivo carácter, cai o disfarce, no perigo do exagero, basta somente uma caracterização desmedida para entrar no território do grotesco, daí a cuidada e pormenorizada descrição técnica desta pintura. A simulação extraordinária das texturas das vestimentas camuflam o desmedido, a impropriedade, com que esta jovem veste as vestimentas e a improbabilidade da consciência desta jovem sobre o poder sexual do seu corpo, uma adolescente como Salomé dificilmente pode entender o desejo que o seu corpo jovem despertou em Heródes.
A manifesta ruptura em relação aos aspectos da corporeidade (as encarnadas faces da jovem contrastando com a cor da tez acentuam o aspecto de caracterização, de teatralidade, levado a cabo em toda esta representação) e a perda da continuidade visual provocada pela pele de marta, principalmente, sobre o ombro esquerdo desta jovem disfarçada de mulher introduzem a questão de propriedade ou da humanidade da mão que sustém o prato com a cabeça decapitada, do antebraço, do seu oculto braço e da única articulação corporal mostrada nesta representação. O ângulo que forma o cotovelo é a única referência que subsiste da extraordinária actividade de articulação que o corpo de Salomé foi capaz de realizar na série de movimentos que configuraram a sua explosiva dança, toda uma rica e plástica demonstração de domínio técnico sobre a complexa coordenação e equilíbrio do movimento corporal, fica reduzida a esta única representação. Uma outra «decapitação»? Outro indício de tematização? O cotovelo esquerdo está representado de tal modo que só se limita a indicar a sua função, quer dizer, é pintado como simples flexão articular sem envolver uma outra qualquer parte do corpo, é um movimento autónomo, funcional, maquinal e independente que se efectua por si próprio. Debaixo deste disfarce não se tem uma noção de corpo, num sentido integral e interrelacionado, foi tecnicamente, exaustivamente, através de uma preciosa técnica pictórica, minuciosa e detalhada nos pormenores da riqueza das vestimentas, despido de toda a sua humanidade e convertido num simples mecanismo. A mão que segura o prato, o antebraço que se articula com o oculto braço é simplesmente uma prótese que é capaz de cumprir só uma única e destinada função: Segurar o prato com a cabeça de João Baptista.
A Salomé não é mais que um mecanismo na engrenagem dos relacionamentos, não é mais que um recurso técnico para executar e dar continuidade aos acontecimentos do relato. Mas é um recurso técnico que se tem mostrado um tanto refractário a deixar-se apagar para permitir o aparecimento dos discursos. Não cumpre o seu papel de transparência assinalado aos signos ou aos símbolos, teima em fazer-se presente, a sua opacidade parece ser a indicação da intensidade de um desejo que possibilite um processo de subjectivação próprio, facultativo e pessoal que a liberte do relato e, do relato do relato, para se posicionar numa intensidade produtiva de relacionamentos configuradores de uma identidade voltada num «soi en soi et pour soi, telle est l’affaire unique et exclusive du portrait»48.
Decretar a inocência ou reafirmar a culpabilidade da adolescente, optar por uma ou por outra interpretação, não é, como foi referido, competência desta investigação, tão somente se procura indicar nesta particular representação do acontecimento bíblico zonas de intensidade ou densidade que possam ser entendidas como manifestações do dispositivo pictórico ou no dispositivo pictórico, que indiquem condições de possibilidade às dimensões do saber, do poder e da subjectivação, condições essas que têm que ver com uma maneira, com um modo de se acomodar nos/aos discursos, os quais estão constantemente a circular pelo dispositivo pictórico.
Por fim, resta salientar que se teve a intenção de manter uma linha de «leitura interpretativa» baseada na distinção que Umberto Eco fez entre «uso» e «interpretação»49, quer dizer, tentar a partir ou do interior do próprio texto (a representação do relato bíblico que encarna esta versão de Salomé de Cranach) fazer referências textuais ao mesmo texto ou aos discursos que este originou nas interpretações do relato bíblico descrito por S. Marcos e S. Mateus, para salientar deste modo, que é a própria imagem de Salomé do Museu Nacional de Arte Antiga que não cumpre transparentemente a atribuição ou a interpretação decretada por um discurso hegemónico. Pelo contrário, esta representação contém «lugares» que propiciam desvios no significado estandardizado. Desvios que se relacionam com uma vontade ou presença do desejo em não sucumbir na clausura do significado imposto por um discurso dominante. E há sinais claros nesse sentido:
  1. A redução operada do próprio relato, deslocando o problema da representação da série de acontecimentos à actualização dos mesmos no momento em que se observa a pintura, introduzindo desta forma, a questão da sua tematização e abrindo a possibilidade de sua discussão e, por conseguinte, a probabilidade de confrontação discursiva.
  2. A representação desta Salomé não se submete com clareza às normas iconográficas que provavelmente circulavam na época para os atributos como os de «lasciva», «luxuriosa» e «libidinosa», a representação destes termos não está visualmente, graficamente, expressa na imagem. Insistir na sua presença nesta representação é uma suspensão da imagem, é uma cegueira, que permite a viabilidade do discurso estandardizado, de um discurso cego.
  3. A rostidade vazia da jovem, a ausência de indícios da sua corporeidade, a representação monolítica e carente de gestos, as excessivas vestimentas que lhe retiram a humanidade, a figuração de uma única articulação corporal que não estabelece relacionamento algum com o resto do corpo e que converte a extremidade superior esquerda da jovem numa prótese cuja única finalidade é suster a bandeja com a cabeça decapitada, todos estes factores parecem indicar um distanciamento ou uma certa ironia em relação às normas discursivas tanto disciplinares como as pertencentes ao discurso ontoteológico.
  4. O retrato da jovem não permite declarar nem a sua «inocência» nem a sua «culpabilidade» na sua participação nos acontecimentos relatados. Nesse sentido, é possível apontar uma correspondência com os relatos dos dois evangelhos que descrevem a decapitação de João Baptista. Apenas e tão-somente sublinha essa ambiguidade, suspendendo o movimento maquinal do discurso dominante da interpretação.
  5. A cabeça decapitada, imagem fortemente sobrecodificada, com um investimento de rostidade evidentemente político, é posta «nas mãos» do retrato de Salomé para que este confirme o seu estatuto. A cabeça do santo decapitada é posta num lugar de vertigem onde corre o risco de perder ou encontrar a sua santidade. É colocada numa situação de «precipitação da dispersão», uma vez que o retrato da jovem não proporciona zonas de redundância ao discurso dominante para poder confirmar o estatuto atribuído.
  6. A ausência do resto do corpo adquire, nessa situação de «mise en abîme» produzida pelo retrato de Salomé; o qual não se constitui no eco das redundâncias da cabeça decapitada, um sinal de suspeita, de advertência relativamente á efectividade do controle e da abolição do desejo. A advertência é esta: cuidado em não seguir as normas que o discurso hegemónico ditou para o saber, o poder e a subjectivação. Uma cabeça decapitada é sempre uma excelente didáctica quer seja por um ou por outro motivo.
  7. A Salomé é uma adolescente, nem o disfarce de mulher que lhe deveria conferir a plena consciência da sua sensualidade, consegue romper a ambiguidade, a suspensão, da possibilidade de subjectivação que este retrato reproduz. A pintura de Lucas Cranach, propriedade do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa, é um retrato de uma redução de identidade, a qual ficará suspensa e congelada até que o verdadeiro responsável dos acontecimentos bíblicos mostre o seu rosto.
  8. No dispositivo pictórico desta pintura configura-se, de forma simulada, uma ruptura, um corte ou confrontação, em relação à dignidade temática dos motivos pictóricos, uma vez que utilizando um tema, referência menor para as normas disciplinares, como é o retrato, aborda a complexidade das relações de poder que se põe em jogo na representação de um tema dito maior, como é a representação dos grandes acontecimentos históricos ou religiosos, dado que era nesses temas que se media a grandeza artística dos pintores. Há um certo ruído, um esboço de uma capacidade de resposta aos constrangimentos discursivos, tanto das normas disciplinares como no que respeita às normas do discurso hegemónico. Capacidade de resposta que se manifesta «a partir o do interior» do dispositivo pictórico, quer dizer, do acontecimento, do acto da pintura que originou esta representação de Salomé.





2. A clausura


A atractiva representação da Salomé do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa radica na ambiguidade, na improbabilidade de dirimir a sua inocência ou culpabilidade, na reiterada utilização de momentos de cortes que bloqueiam toda a atribuição maquinal das características com as quais o discurso hegemónico identificou a Salomé. Para isto, o dispositivo pictórico produz zonas de intensidade ou densidade em que se manifesta a possibilidade de um esboço de resposta frente aos constrangimentos discursivos próprios da prática disciplinar, como também frente às interpelações provenientes do discurso hegemónico de índole ontoteológico. São indícios, dessa hipotética capacidade de resposta, os sucessivos sinais visuais que se apresentam distanciando-se das normas iconográficas da época indicando, deste modo, a distorção ou o desvio no uso das mesmas. Especificamente os sinais são: a extraordinária técnica descritiva dos elementos circunstanciais ao relato, os quais configuram os elementos da materialidade que precipitaram na ambiguidade do retrato da Salomé para desencadear a dispersão do discurso hegemónico, e, a inteligente redução da série de acontecimentos que constituíam o relato bíblico na sua máxima tematização, isto é, o retrato da cabeça decapitada e o retrato da jovem.
Circulam por essas instâncias apontadas as dimensões do saber, do poder e da subjectivação, configurando zonas de intensidade que podem ser entendidas como manifestações do dispositivo pictórico. Mas, surge a pergunta: São, essas manifestações, suficientemente explícitas para efectivamente as reconhecer ou distinguir como possibilidade de uma capacidade de resposta? E seguindo a indicação deleuziana quando afirma que o desejo é: «esse conjunto de sínteses passivas que maquinam os objectos parciais, os fluxos e os corpos, e que funcionam como unidades de produção», surge uma outra pergunta: É este desejo, esta ânsia de libertar-se das normas, suficientemente explicito para constituir um programa específico, autónomo, que se afirme como um exemplo viável no uso das dimensões do saber, do poder e da subjectivação?
A primeira parte deste capítulo consistiu numa aproximação «crítica»50 à representação da pintura pertencente ao Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa, com a finalidade de indicar os lugares no e do dispositivo pictórico onde a continuidade ou a consistência do discurso dominante entrava numa instância de dispersão. Esta segunda parte procurará dilucidar estas duas perguntas e verificar se esta particular representação se pode constituir como um objecto «a propósito dos (do) quais (qual) se poderiam afirmar ou negar proposições verdadeiras ou falsas»51
Uma das particularidades desta representação evidenciou-se por um trabalho de intertextualidade, quer dizer, quando se comparava o modo, a estratégia, de apresentação do relato bíblico elaborada nesta representação com outros dispositivos pictóricos desenvolvidos para aludir à série de acontecimentos que constituíam o relato, verificando-se que nesta Salomé não se recorria, no seu dispositivo pictórico, nem à utilização de imagens sequências imóveis, nem à eleição de um hipotético «instante mais favorável» para dar conta da totalidade dos acontecimentos nos quais participou a adolescente. Nesta representação optou-se por uma redução extrema, não se intentou apresentar os momentos de enunciação passando-se directamente aos enunciados. Estrategicamente, privilegiou-se um tema menor: o retrato, colocado por sua vez numa situação de «mise en abîme», um quadro dentro dum quadro, intensificando desse modo a ambiguidade de toda a representação. Foi, novamente, através de uma aproximação intertextual que se encontraram evidências consistentes sobre os aspectos formulados nestas duas perguntas.
Lucas Cranach, o velho, pintou uma série de versões52 da Salomé e, a raridade ou especificidade desta representação de Lisboa, ressalta ainda mais quando é comparada com as outras versões realizadas pelo mesmo pintor.



A versão da pintura do Museu de Munique pintada entre os anos de 1510 e 1512, portanto uns dois anos depois, já introduz significativas diferenças que se prolongam pelas outras duas versões com as quais se comparará a Salomé de Lisboa, são estas a Salomé de Gotemburgo e de Budapeste. Se bem que mantenha (na Salomé de Munique) os desvios de representação em relação à ausência de animais que indicariam as qualidades de «lascívia» ou «luxúria», pelo menos, tem uma correspondência nomeadamente na presença de cabelos muito encaracolados, detalhe que o texto de Ripa apontava pormenorizadamente.

Mas é relativamente às indicações de uma mulher muito jovem e ricamente vestida e à abertura cromática indicada no texto de Ripa na frase: «el paño con que cubre sus partes habrá de estar compuesto de diversos colores»53, onde se verifica uma aproximação às normas iconográficas. Toda a eficiência descritiva dos elementos circunstanciais ao relato começa, a partir desta pintura, a desenvolver-se numa direcção em que se confirmarão as atribuições que o discurso hegemónico outorgou a Salomé. A pormenorizada descrição das vestimentas que na jovem Salomé de Lisboa indicavam uma certa impropriedade nas elegantes roupas que cobriam e disfarçavam o seu corpo, abrindo assim uma opacidade, uma zona refractária ao discurso dominante, nestas outras pinturas, as jovens representadas assumem com total propriedade as suas riquíssimas vestimentas, a minuciosa e exaustiva técnica pictórica confirma o discurso, não se constituindo como uma resistência. Poder-se-á dizer que nestas três representações as jovens adolescentes têm plena e total consciência do uso das vestimentas e das belíssimas jóias com que cobrem o seu corpo, têm consciência do poder do seu corpo feminino, como conhecem também os modos de organizar e sistematizar o dito poder com os objectos e as vestimentas que usam54.



A partir da Salomé do Museu de Munique é possível reconhecer uma representação tipo para os colares e gargantilha usadas nestas três representações de Salomé, o seu número pode variar, mas as características gerais repetem o mesmo esquema. É este um dos aspectos em que uma maior diferença se observa com a Salomé de Lisboa, a qual só usa uma gargantilha bastante modesta.
Não deixa de chamar a atenção o facto de Cranach vestir as suas representações de Judite55, com o mesmo tipo de jóias que usam estas três «Salomés», as quais assumem sem problemas, a condição de mulher sensual e sexual. É este aspecto fundamental para o desenrolar dos acontecimentos no relato bíblico em que participa Judite. É através de um apurado domínio e controlo da sua sensualidade, conseguida graças à sua vida como viúva virtuosa, que Judite consegue levar adiante a sua missão, dir-se-á que o saber colocar e usar estas jóias outorgam a condição de mulher sensual, mas, é pela representação da espada que se prova o controle da sexualidade.
Mesmo assim, em nenhuma destas representações se tem perdida a continuidade visual entre as cabeças e os corpos das jovens, não há nenhuma vestimenta que interfira visualmente na continuidade da articulação entre o ombro e os membros superiores. As «Salomés» de Munique, de Gotemburgo e de Budapeste tomam e seguram a bandeja com a cabeça decapitada de João Baptista com segurança e autoridade, como se de um adereço das suas sumptuosas vestes se tratasse. O corpo destas jovens apresenta-se aos olhos de uma maneira mais explícita, a possibilidade de nudez é muito mais evidente porque é o próprio percurso visual que confirma as formas e a continuidade dos corpos graças ao olhar interrupto dos bordos das figuras e pela superfície nua mais generosa nestas três representações. O olhar configura o corpo do seu desejo seguindo as indicações dadas pela continuidade dos limites da figura, desta maneira, as formas das jovens atraem e configuram o olhar. No desejo existe uma implicação mútua, é um processo: «O desejo e o seu objecto são uma só e mesma coisa: a máquina, enquanto máquina de máquina»56. A maior quantidade de superfície corporal expõe mais evidentemente a carnalidade destas jovens, não por um trabalho cromático propriamente dito, mas pela diferença de textura que se estabelece entre a pele e as jóias que cobrem o peito destas representações da Salomé.
Ao nível das rostidades e da sua política de sobrecodificação, também estas representações operam num patamar de transparência conivente com o discurso estandardizado. A Salomé de Munique literalmente mostra o seu prato com a cabeça decapitada, juntando à autoridade com que segura o prato, um ligeiro movimento de articulação entre a sua cabeça e o pescoço, mínimo rasto de um gesto que introduz uma qualquer referência de acção distanciando-se, deste modo, da total redução operada na Salomé de Lisboa, redução que implicava a opção por um tema menor como era o retrato. Este pequeno movimento de articulação desloca a imagem pictórica do retrato na sua conceptualização mais extrema: «le personnage représenté n’est pris dans aucune action ni même ne supporte aucune expression qui détourne de sa personne elle-même (…) le portrait autonome doit être – et faire – l’ímpression d’un sujet sans expression57 colocando-a nalgum momento dos acontecimentos do relato bíblico, aproximando-se desta maneira os retratos de Salomé realizados por Tiziano e Guido Reni. Ou seja, por mínimo que seja o gesto, é de qualquer modo suficientemente poderoso para neutralizar ou minimizar a noção de «mise em abîme» que o quadro dentro do quadro instaurava. Nesta representação os dois possíveis retratos, o da Salomé e o de João Baptista, inscrevem-se, pelo gesto da jovem, num mesmo momento dos acontecimentos, ou seja, irrompe nesta imagem uma certa ideia de temporalidade que marginaliza ou minimiza a tematização.

Na Salomé de Gotemburgo recupera-se a tematização mas, por outro lado, desenvolve-se de um modo mais explícito a relação entre os traços e as linhas do seu rosto, especificando assim, uma ideia bastante mais acabada ou conseguida de uma determinada rostidade. Noutros termos, os seus olhos entreabertos, o olhar das suas pupilas, que definem um ângulo distinto com o plano da face olhando directamente ao espectador, e o esboço de um riso, são indicações susceptíveis de associar a uma expressividade que corrobore o carácter atribuído a Salomé nas interpretações dos relatos bíblicos. Não há dúvidas, de que o rosto desta representação, assume e reproduz uma determinada política de rostidade.
A intenção cromática também se modifica a partir da Salomé de Munique, onde paulatinamente se desenvolve um aumento da intensidade da cor até chegar à diferença evidente entre a Salomé de Lisboa e as de Gotemburgo e de Budapeste, diferença que se vê ainda mais extremada pela inclusão, nestas duas últimas pinturas, de uma representação paisagista no canto superior do quadro, isto é, à direita das jovens retratadas.



A Salomé de Gotemburgo veste um traje vermelho, que uma interpretação literal não deixaria de apontar como «veste com o sangue do santo». A paisagem, possível de apreciar porque o cortinado que fazia de fundo está aberto ligeiramente, é uma planície em tons verdes que contrastam com os vermelhos do traje onde sobressai abruptamente uma montanha no cimo do qual se distingue um palácio. O céu, começa num horizonte cinzento muito próximo do branco para subir a sua intensidade cromática até um cinzento azul-esverdeado que acaba no limite superior do quadro. É esta representação da Salomé a que mais efectivamente reproduz o discurso estandardizado e, portanto, a que mais se afasta da Salomé de Lisboa.






A belíssima jovem retratada como Salomé, propriedade do Museu de Belas Artes de Budapeste, pintura realizada por Lucas Cranach uns 20 anos depois da Salomé de Lisboa, estabelece com esta última um interessante e subtil jogo de aproximações e distanciamentos, os quais, se concentram na aparente ambiguidade expressiva da embriagadora beleza desta representação da Salomé. Se é evidente que a indicação de «jovem bela» depende do conceito da beleza que em cada época se configura, colocando a questão da beleza feminina num nível em que não se tem uma conclusão possível, é impossível não recorrer a esse atributo para descrever o retrato desta jovem. É esta jovem extremamente bela e de uma beleza que dói porque é jovem. Cranach pintou a beleza da juventude, a beleza de um corpo jovem, independentemente das modas e dos gostos de uma época, da beleza da consistência das carnes, da limpidez e firmeza de uma pele ainda inocente da sua decrepitude. Lucas Cranach pinta esta Salomé aos 58 anos, quando pinta a Salomé de Lisboa tinha entre 37 ou 38 anos, e essa diferença faz, nesta representação, uma enorme diferença.
A representação desta Salomé de Budapeste estabelece paralelamente diferenças com a Salomé de Gotemburgo. À explicita evidência e correspondência com as qualidades atribuídas a Salomé pelo discursivo hegemónico, ao uso contrastante das cores: o vermelho do traje e o verde da planície, desta última. A Salomé de Budapeste contrapõe uma tranquilidade na expressão que pode ser qualificada como expressiva ou inexpressiva, dependerá de quanto assumido está o discurso estandardizado, e uma utilização da cor condicionada por variações de harmonia mais que de contraste. Tem esta representação da Salomé de Budapeste um pausado, calmo e constante fluir de sinais que a vinculam aos acontecimentos do relato bíblico. Assume claramente o seu papel, a diferença da Salomé de Lisboa, no entanto, não «grita» a sua participação nos factos, dir-se-á que está concentrada em si mesma, na sua interioridade, a qual por sua vez é representada pela sua máxima exterioridade: o seu rosto, a suas vestimentas, a sua dolorosa beleza.
A Salomé de Lisboa foi apontada como a representação de um mecanismo, isto é, como a apresentação das partes constituintes de uma máquina e cuja função não está vinculada nem condicionada pelo carácter ou classe das partes, nem pelas finalidades de um determinado discurso, é uma imagem vazia. Esta Salomé de Budapeste é claramente a representação de um instrumento, ou seja, tudo aquilo que serve para executar um determinado trabalho; o seu valor de instrumento radica na sua adaptabilidade aos requisitos da acção e os resultados obtidos nessa participação, é uma imagem pela qual circula uma funcionalidade determinada. Instrumentalização, que é confirmada na representação, pelo uso de uma inteligente estratégia cromática a qual desenvolve um subtil jogo de harmonias sucessivas com a finalidade de configurar, implicitamente, a circulação, o fluxo dessa funcionalidade que arrasta as personagens e a natureza num infinito desenrolar de acontecimentos.
O ponto da origem num ciclo, evidentemente, pode ser qualquer um, ainda que esta pintura apresenta dois pontos salientes, são estes, os retratos de Salomé e do Santo. Qualquer um deles poderá ser escolhido para descrever o recorrido do fluxo, neste caso, optou-se pela bandeja com a cabeça decapitada de João Baptista. A instrumentalização, a funcionalidade, representada nesta Salomé de Budapeste seria a seguinte:
A cabeça decapitada de João Baptista remete para a circularidade do prato que, como já foi apontado, é o seu suporte, o seu corpo e o seu marco, a continuidade e a perpetuidade dessa prisão é quebrada pelas mãos da jovem que tomam e seguram o prato estabelecendo uma ponte cromática entre a cor da tez do morto, as cores das mãos da jovem e a cor do fino tecido brocado. Há uma notável correspondência cromática entre esses três elementos nos quais se usaram variações tonais de um castanho dourado. Esta cor repete-se, intermitentemente, ritmicamente, no braço para depois continuar nas riquíssimas jóias que envolvem o peito da jovem, daí sobe o fluxo pela gargantilha até à cabeça, cujos cabelos estão ocultos pelo tecido brocado. O elegante chapéu da Salomé é de uma cor mais escura, mas da mesma família cromática e, a sua forma circular, ajuda a multiplicar a sensação de circulação. Desce o fluxo fazendo o trajecto inverso até ao peito da jovem para daí, do coração da Salomé, saltar para a natureza, fielmente representada pelo paisagem outonal do primeiro plano que a janela deixa entrever. Está representado um caminho que sobe as montanhas até ao palácio, onde as variações tonais tendem a cores mais frias sem perder, no entanto, as suas qualidades de origem produzindo-se assim um contraponto rítmico com a frieza manifesta das águas azuis do lago, com as montanhas que ao longe destacam os seus picos aparentemente nevados e com uma franja azul na zona intermédia do céu. Essas três cores frias sequencialmente indicam uma possível direcção ao fluxo. O céu começa no horizonte por um amarelo muito diluído e pálido que na sua ascensão se irá modificando até chegar ao azul já indicado. Nessa altura iniciar-se-á uma turbulenta transformação do céu até alcançar uma obscuridade nocturna, de tal maneira, que o extremo superior do céu confundir-se-á com a cor do fundo que envolve a figura de Salomé, produzindo-se deste modo, uma fluida passagem entre o céu e o fundo da habitação que ocupa a jovem. A janela, aparentemente, na sua extremidade superior deixou de existir. A cor do fundo, de uma obscuridade cerrada, apenas deixa ver a continuidade dos braços da jovem enquanto estes são vestidos por um tecido preto que ritmicamente desce até ao antebraço para fechar-se depois, na obscura cavidade da boca entreaberta da cabeça decapitada de João Baptista e assim permitir o reinício do ciclo.
Esta circulação tem, no chapéu que usa a jovem, um evidente eco que reproduz o fluir da instrumentalização. Ornamentado cuidadosamente a intervalos regulares por penas de uma mesma cor, o chapéu, ritmicamente repete, qual efeito de ressonância, o fluir, a circulação que começava no cadáver, passando pelo corpo belo; porque jovem da Salomé, continuando na decadência cíclica e natural do outono para finalmente sucumbir na mais absoluta obscuridade que será quebrada pelas mãos da jovem que segura o prato com a cabeça decapitada.
Fantástica e instrumental representação da Salomé, a sua inocência pode ser sustentada por esta pintura assim como a sua culpabilidade; é uma questão de se adaptar a imagem a uma determinada finalidade discursiva, é uma questão de saber instrumentalizar de acordo com as necessidades discursivas. A Salomé de Budapeste com uma aparente apatia, que por vezes raia a soberba, apenas se limita a olhar o espectador da sua irresistível e dolorosa beleza. É aqui que reside o jogo de aproximação e de distanciamento relativamente à Salomé de Lisboa, nesta aparente ambiguidade entre a sua inocência e a sua culpabilidade. No entanto, a representação propriedade do Museu de Lisboa, nunca consegue dar indícios sólidos num sentido ou no outro; a Salomé de Lisboa sublinha sempre a sua condição de mecanismo pelo que não pode evidenciar um qualquer discurso.

Este trabalho de comparação entre estas quatro versões da Salomé realizadas pelo mesmo pintor permite organizar algumas ideias. Desde os anos de 1509 - 1510, anos indicados para a realização da Salomé de Lisboa, até 1530, ano assinalado para a execução da Salomé de Budapeste, verifica-se no dispositivo pictórico destas representações uma aproximação ao discurso estandardizado, o qual identificava a jovem adolescente que dançou perante Heródes, com atributos como os de «lasciva», «luxuriosa», «sensual», etc., convertendo o corpo feminino num lugar onde mora o pecado. Quer dizer, coloca-se o corpo feminino numa perspectiva de uso instrumental, para o bem ou para o mal, sendo os exemplos redutores e extremos desse discurso em relação ao corpo da mulher os casos de Judite e de Salomé respectivamente. Ainda que, relativamente a esta última, o discurso por vezes aceite duas possibilidades, uma primeira, pérfida e consciente dos poderes de sedução do seu corpo, e outra, inocente. A Salomé de Gotemburgo representaria claramente a primeira dessas directrizes discursivas e a Salomé de Munique e de Budapeste contêm a possibilidade das duas linhas discursivas. No entanto, e apesar dessas diferenças de intenção discursiva, o que fica com clareza evidenciado é que estas três representações se acomodam aos requisitos discursivos, não indicando os seus dispositivos pictóricos rupturas ou zonas de dispersão discursiva com o mesmo nível de clareza manifestado no dispositivo pictórico da Salomé de Lisboa. Estes três retratos de Salomé, com as suas diferenças de estilo, confirmam o estatuto conferido à personagem do relato bíblico.
É tentador referir-se ou utilizar as informações de carácter biográfico que vinculam Lucas Cranach a seitas Adamitas, as quais viam na satisfação dos instintos a experiência da autêntica liberdade, ou indicar a sua amizade com Lutero como factores que poderiam explicar uma eventual oposição às interpretações reconhecidas por alguma autoridade Papal, na tentativa de construir um espaço próprio para esta cativante Salomé de Lisboa. Mas ao fazer isso, tentava-se somente, consolidar uma determinada interpretação, questão secundária relativamente aos objectivos desta investigação.
Por outro lado, a Salomé de Lisboa só é possível de incluir na mesma direcção discursiva, que claramente representam as outras três versões da Salomé de Cranach, operando uma racionalidade que descansaria numa lógica estatística, isto é, se uma maioria de representações do mesmo autor apontassem para um determinado uso das normas discursivas é, portanto, natural associar a Salomé de Lisboa a estas mesmas intenções. Só que esta lógica levanta-se a partir de pressupostos duvidosos e interessados, primeiramente, porque se dá ao autor uma suposta consciência de intenções que se sobrepõem à própria representação pictórica, posicionando o autor num lugar privilegiado onde se confunde com o sujeito privilegiado criado pelo discurso hegemónico para controlar as interpretações. Por outras palavras, dá-se ou defende-se um princípio de autoria para logo o suprimir ou o diluir na autoridade das normas discursivas hegemónicas. E, por outro lado, colocam-se ou reduzem-se as representações ou proposições disciplinares a uma figura discursiva muito próxima do comentário, no qual, as representações ou proposições só podem repetir, como se de uma ilustração se tratara, o que já foi estabelecido previamente pelo discurso hegemónico.
Estes dois pontos de vista contrapõem-se ao estatuto de disciplina que se tem indicado e utilizado nesta investigação para descrever o acontecimento da pintura, mas é, justamente pela existência de imagens como as de Salomé, propriedade do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa, que se pode e deve reconhecer, afirmar e comprovar que o acontecimento da pintura é, sem sombra de dúvida, uma prática disciplinar. No pensamento foucaultiano definia-se a disciplina em oposição a essas duas noções, a de autor e de comentário. E é aqui que radica a importância e a força desta Salomé de Lisboa, dado que manifesta, na sua própria representação, na maneira como se organizam os seus elementos, no modo como se abordam os acontecimentos do relato bíblico, na forma em que se distanciou das normas disciplinares, iconográficas e do discurso hegemónico. Em definitivo, nas condições em que o seu dispositivo pictórico se organiza, uma vontade de afirmar-se como proposição disciplinar independentemente das intenções do seu autor e das normas fixadas para o comentário, dir-se-á que nesta Salomé se configura um esboço de pretensão de autonomia disciplinar totalmente fora de lugar para a época em que se realizou e, não é preciso trazer à discussão antecedentes biográficos58, históricos, económicos ou de qualquer outro âmbito, para explicar esta perturbadora representação da Salomé de Lisboa. Basta estar atento às maneiras, ao modo, às formas e às condições de possibilidade que no e do, portanto, «a partir ou do interior» do dispositivo pictórico se configuram para perceber as zonas de ruptura com as normas discursivas. A questão que se coloca e interessa saber é se o esboço desta suposta capacidade de resposta, se o desejo que circula através do dispositivo pictórico desta representação, independentemente das intenções do seu autor e dos acontecimentos do relato bíblico, são suficientemente fortes como para constituir com solidez uma eventual resposta que enfrente as disposições disciplinares e os constrangimentos do discurso hegemónico, como também, indique a definição de um programa viável no uso das dimensões do saber, do poder e da subjectivação.
Pelo que indicam as outras três representações posteriores da Salomé realizadas pelo mesmo autor, este esboço, estes sinais de manifestações que circulam pelo dispositivo pictórico da Salomé de Lisboa só ficaram subtilmente indicadas, mas nunca assumidas, é uma promessa que não passará disso mesmo. Os desvios, a rarefacção, a opacidade, a teimosia desta representação é apagada, controlada e enclausurada, pelo discurso hegemónico, o qual lhe indica o seu lugar, a sua função e significado «no verdadeiro». Não é possível distinguir um princípio de regularidade entre estas quatro representações que permita indicar com segurança a configuração de um determinado programa ou resposta específica frente aos constrangimentos disciplinares e ao discurso hegemónico, como para reconhecer uma vontade de expressão política. Não era possível pensar e estabelecer redes de relacionamentos disciplinares à margem do sentido ou significado indicado pelo discurso hegemónico.
E as versões posteriores da Salomé de Lisboa, parecem indicar cada vez mais a tomada da consciência e a capitulação das normas disciplinares perante as imposições discursivas do discurso dominante. A obediência, implícita ou explícita, a esse discurso, inviabiliza a possibilidade de «ver» as manifestações ou contramanifestações que circulam no dispositivo pictórico como respostas «a partir ou do interior» da prática disciplinar, pelo que se torna impossível a sua articulação num programa autónomo e específico, quer dizer, político. Optando-se por «ver», simplesmente, a presença de modificações do «espaço pictórico», contornando deste modo, a confrontação com o discurso hegemónico.
A particular representação da Salomé de Lisboa é uma dessas raras e extraordinárias imagens que encarnam e dão conta dessa situação de conflito e da sua irremediável clausura por um discurso dominante, que sucede entre condições de possibilidade, de formas, de maneiras e de modos de usar as dimensões do saber, do poder e da subjectivação, por isso não é tão relevante defender um determinado espaço ou uma determinada interpretação para esta representação de Salomé. O verdadeiro interesse desta pintura radica na sua modernidade, na actualidade com que põe em evidência a conjuntura política efectivada em qualquer representação. Não é, esta Salomé, uma imagem fechada num determinado e exclusivo sentido, significado ou interpretação, o paradoxo é este, é pela impossibilidade de alcançar a totalidade que toda a interpretação, significado, ou sentido procuram que esta imagem actualize as possibilidades de relacionamentos com o que fica de fora da interpretação, da significação e do sentido estipulado, é uma abertura à complexidade que o dispositivo pictórico instaura e que o espaço pictórico oculta.







1 Evangelho de S. Marcos, Novo Testamento.
2 Os discursos que se elaboram na disciplina pictórica no Renascimento (e praticamente até a Modernidade) estão inscritos nesse modelo ontoteológico que define, explica e guia a experiência do mundo. Encontram-se nos apelos de defesa da nobreza da pintura um bom exemplo dessa situação. A maioria desses discursos procura salientar o aspecto mental sobre o manual, colocando-se claramente na questão da finalidade. Ainda que, produto do debate entre fé e razão, seja possível encontrar já no Renascimento claras intenções de sistematizar a experiencia, a observação do mundo (Leonardo por exemplo) situação motivada probabelmente pelo acesso mais livre a outros textos antigos que se distanciam da influência platónica, como é o caso dos escritos dos filósofos pre-socráticos, ou de textos que constróem o seu discurso a partir das impressões, das sensações, dos sentidos, como é o caso de Epicuro. Mas nunca chega, no entanto, a pôr-se verdadeiramente em questão os fins, o sentido de finalidade. Esta incipiente cientificidade com evidentes procedimentos técnicos dirige-se e resolve-se no sentido da finalidade estabelecida por essa visão ontoteológica do mundo. Apaga-se ou procura-se marginalizar da pintura a eventual suspeita de ser uma actividade que se feche exclusivamente sobre os seus procedimentos técnicos, os seus meios de produção, tentando-se fugir, em definitivo, a uma eventual acusação de prática “sofista” colando-se ao discurso que vê, lê e sente um texto já eternamente escrito e em que o papel da representação é traduzir aquele sagrado relato oculto na natureza das coisas e das palavras.
3 Como substrato conceptual desta investigação se utiliza uma série de noções propostas pelo filósofo francês Michel Foucault. No pensamento foucaultiano desenvolvem-se três «dimensões», três forças que se apresentam nos discursos: o saber, o poder e a subjectivação. O saber seria o regime das formas do visível e do enunciável, não é nem das coisas nem das palavras ou das frases, é a condição de possibilidade do discurso da visibilidade, das coisas ou dos enunciados, citando a G. Deleuze: “É (o saber) o pensamento como arquivo”. O poder seria utilizar o pensamento como estratégia (daí a sua evidente relação com a política), realizar acções sobre outras acções: “O poder é justamente esse elemento informal que atravessa as formas do saber, que está debaixo delas. Por isso chama-se microfísico. É força, relação de forças, não forma (…) É uma dimensão distinta do saber, ainda que no concreto a mistura do poder e do saber não seja discernivel. É o diagrama”. E a subjectivação seria o conjunto dos procedimentos ou opções para se fazer indivíduo, ou dito de um outro modo, é o conjunto das experiências individuais cruzadas ou articuladas com a experiência de sociabilização: “Se tem que “dobrar” a relação das forças através de uma relação consigo mismo que permite-nos resistir, fugir, reorientar a vida o a morte contra o poder. Isso é, segundo Foucault, o que inventaram os gregos. Já não se trata, como no caso do saber, de formas determinadas ou, como no caso do poder, de regras coactivas: trata-se de regras facultativas.” Deleuze, G. – Conversaciones. Tradução livre.
4 “O lugar da discontinuidade” é o corte verificado entre a experiência, com e no mundo, e a sua explicação. Explicação que é sempre desemvolvida pela e na linguagem.
5 Na tentativa de cumprir o objectivo de configurar um discurso a partir ou do interior da pintura foi precisso afastar-se de termos como os de “Espaço Pictórico”, uma vez que aquela noção era operacional só num discurso de carácter formal ou formalista. Discurso extremamente frágil e sensível quer à crítica desconstructivista derridiana quer à foucaultiana. Daí que, em primeiro lugar, se aproximou ou se incluiu o acto de pintar na noção de “disciplina” (veja-se, Foucault, M. – A Ordem do Discurso) e em segundo lugar, se optou por misturar o conceito de “dispositivo” foucaultiano como o termo “pictórico” configurando um suporte em rede, de carácter flexivél e aberto, atento às manifestações que circulam pelos dispositivos mais que nas modificações que ocorrem no espaço pictórico. Deste modo, tentava-se aludir a esse “materialismo do incorporal” que Foucault identificava no acontecimento.
6 A História dos Tipos é o segundo dos três princípios que Panofsky propõe como elementos controladores da interpretação é definido do seguinte modo: “Compreensão da maneira pela qual, sob condições históricas diferentes, temas ou conceitos específicos foram expressos por objectos ou acções.” Outro principio é a História do Estilo: “Compreensão da maneira pela qual, sob condições históricas diferentes, objectos ou acções foram expressos por formas.” E por último, a História dos Sintomas culturais ou símbolos em geral: “Compreensão da maneira pela qual, sob condições históricas diferentes, tendências essenciais do espirito humano foram expressas por temas e conceitos específicos.” PANOFSKY, E. - Estudos de Iconologia, pág. 27. Os destaques em itálico são do autor.
7 No relato bíblico descreve-se um “prato” e Panofsky indica uma “bandeja”, esta diferença não modifica substancialmente as perspectivas deste texto, pelo que usar-se-á indistintamente ambos os termos.
8 PANOFSKY, E. – Estudos de Iconologia, pág. 26.
9 RIPA, C., “Iconología”, Tomo II, Madrid, Akal, 1987, pág. 13.
10 Op. cit., pág. 13.
11 Op. cit., pág. 13.
12 Op. cit., pág. 33.
13 É inimaginável pensar na realização de um inquérito onde a pergunta formulada seria: Esta representação é lasciva ou não? Seja a representação coisa, animal ou pessoa. Para depois categorizar, de acordo às respostas, o valor ou efectividade de determinadas obras plásticas.
14 Deleuze e Guattari no “Anti-Édipo” abordam o desejo de uma maneira oposta à concepção de falta ou da ausência, numa linha que mantém uma «regularidade» com a crítica de Derrida sobre a noção de presença – ausência. Estes autores descrevem o desejo do seguinte modo: “O desejo é esse conjunto de sínteses passivas que maquinam os objectos parciais, os fluxos e os corpos, e que funcionam como unidades de produção. (…) Ao desejo não falta nada, não lhe falta o seu objecto. É antes o sujeito que falta ao desejo, ou o desejo que não tem sujeito fixo; é sempre a repressão que cria o sujeito fixo. O desejo e o seu objecto são uma só e mesma coisa: a máquina, enquanto máquina de máquina.” DELEUZE, G.; GUATTARI, F. - O Anti-Édipo, capitalismo e esquizofrenia, pág. 31.
Veja-se, também, em relação ao sentido do desejo em Deleuze a sua entrevista em DELEUZE, G.; PARNET, C. – Dialogos, págs. 101,102.
15 PINHARANDA, J. - A sétima parte do corpo, in O impulso Alegórico, retratos, paisagens, naturezas mortas, pág. 49.
16 Evangelho de S. Marcos, Novo Testamento.
17 Idem.
18 Idem.
19 RIPA, C. – Iconologia, Tomo II, pág. 20 e21.
20 AYUSO de VICENTE, M.ª; GARCIA, C.; SOLANO, S. - Diccionario de Términos Literários”, pág. 322.
21 Op. cit., pág. 322.
22 Op. cit., pág. 322.
23 O primeiro na sua pintura mural no Duomo Prato e o segundo numa pintura propriedade da National Gallery of Arts de Washington.
24 Tanto Lessing, no seu “Laocoonte” (1766) como Diderot nas suas considerações estéticas, indicam a existência de um “instante mais favorável ou instante perfeito” que tem como a sua característica mais relevante a suposta capacidade de conter num instante todo o desenrolar do relato. A prática da pintura já utilizava esse recurso sem, no entanto, o conceptualizar. De facto é Lessing o primeiro que teorizou a esse respeito. A aceitação generalizada desta fracção temporal favorável ou perfeita prolongar-se-á até à aparição da fotografia o que demostrará o erro teórico desta concepção. A fotografia mostra inquestionavelmente que não há instantes mais favoráveis ou essenciais, pelo contrário, todos os instantes fotográficos são “instantes quaisquer”. E esta contribuição da fotografia pode ser entendida como um “duplo crime”, dado que por um lado demostra que não há momentos mais significativos que outros e, por outro, põe em evidência que o conceito de realidade estava mediado por um relato hegemónico, o que deve ser conhecido ou indicado pelo sujeito privilegiado para poder ver, ler ou entender numa imagem fixa a totalidade do relato. Ou seja, regulava-se através de um discurso o conceito de realidade.
25 NANCY, J-L. - Le Regard du Portrait, pág. 14.
26 Op. cit., pág. 14-15.
27 Asume-se, nesta investigação, que o acontecimento da pintura, o seu produto e o seu discurso estão sempre condicionados ou colocados na linguagem, uma vez que não é possível realizar uma operação de distinção ou de referência de nós mesmos ou de qualquer coisa sem a ajuda da linguagem. É pela evidência desta impossibilidade que se avança este conceito de «precipitação da dispersão», se é impossível estar de fora da linguagem só resta acentuar o seu desvio. É o que Derrida anunciava com o seu «não há fora do texto» e propunha noções como a de «differánce», que indica que a «exterioridade» só é possível de configurar pela indicação, a partir ou do interior da linguagem, dos desvios, ruídos, diluições e dispersões que ocorrem na linguagem. Deste modo se distanciava e polemizava com Foucault em relação a uma possibilidade de exterioridade efectiva, (veja-se : DERRIDA, J., « Cogito e História da Loucura »)
28 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. - Mil Platôs, pág. 31.
29 Op. cit., pág. 33.
30 Op. cit., pág. 42.
31 Op. cit., pág. 32.
32 Op. cit., pág. 35.
33 PANOFSKY, E. - Estudos de Iconologia, pág. 26.
34 MARCHESE, A.; FORRADELLAS, J., op. cit., pág. 253.
35 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. - Mil Platôs, pág. 35.
36 Com esta conceptualização estes autores explicam uma outra possibilidade, contrária à “rostidade”, que envolve todo o corpo e não somente partes dele. O corpo não estaria determinado pelas suas partes ou órgãos, daí a utilização da expressão de A. Artaud: “Corpo sem Órgãos”, para indicar que o corpo se constituíra pelo nível de intensidade de forças que operam e circulam na superfície. Diferenciando-se de uma concepção articulada ou estruturada em que diversas peças são montadas para construir um corpo. É, portanto, ao nível dos agenciamentos de superfície e da sua intensidade que se constituem forças que formam um corpo ou, dizendo melhor, uma ideia de identidade do corpo: “colocam o corpo em conexão não com a rostidade, mas com devires animais (…) Sem dúvida não existe menos espiritualidade: pois os devires-animais referem-se a um Espírito animal, espírito-jaguar, espírito-pássaro, espírito-ocelote, espírito-tucano, que se apoderam do interior do corpo, entram em suas cavidades, preenchem os volumes, ao invés de lhe criar um rosto.” A rostidade impede justamente esta política “multidimensional” dos corpos: “Trata-se de uma abolição organizada do corpo e das coordenadas corporais pelas quais passavam as semióticas polívocas ou multidimensionais. Os corpos serão disciplinados, a corporeidade será desfeita, promover-se-á a caça aos devires animais, levar-se-á a desterritorialização a um novo limiar, já que se saltará dos estratos orgânicos aos estratos de significância e de subjectivação. Produzir-se-á uma única substância de expressão.” DELEUZE, G.; GUATTARI, F. - Mil Platôs, págs. 43 e 49 respectivamente.
37 NANCY, J-L. - Le Regard du Portrait, pág. 33.
38 Já Plínio reflectia sobre o retrato nesta perspectiva didáctica e criticava a banalidade com que se assumia a sua produção na sua época, veja-se, Plínio el Viejo, Textos de historia del Arte. Mas, é quando faz referência à obra de Varrón onde se manifesta a importância do retrato na sua componente comemorativa e didáctica “Que tuvo (M. Varrón) la buenísima idea de insertar en su fecunda obra unos setecientos retratos de hombres ilustres, impidiendo así que desaparecieran sus figuras o que el paso del tiempo prevaleciera sobre los hombres; se le puede considerar inventor de un regalo que incluso provocó la envidia de los dioses, porque no sólo les confirió la inmortalidad, sino que hizo también que fueran conocidos por todas las tierras, de manera que podían, como los dioses, estar presentes en todas partes.” Plínio el Viejo, Textos de Historia del Arte, págs. 74 e 76. respectivamente
39 PINHARANDA, J., op. cit., pág. 49.
40 Ficha do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa.
41 AYUSO de VICENTE, M.ª; GARCIA, C.; SOLANO, S., op. cit., pág. 322.
42 Ripa, C., op. cit., pág. 13.
43 Op. cit., págs. 13 e 33.
44 Op. cit., pág. 13.
45 Op. cit., pág. 33.
46 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., op. cit, pág. 47.
47 O médico A. Sales Luís faz uma referência interessante acerca dessa peculiar deformação anatómica: «A distorção clínica inerente ao médico não permitirá deixar escapar o bócio, e principalmente um enorme e aberrante membro superior esquerdo, com cotovelo não identificável, antebraço estranho, mas dedos e mão equilibradas. Certamente liberdades artísticas que não chocam» A. SALES LUÍS, Um percurso num retrato, in O Impulso Alegórico, retratos, paisagens, naturezas mortas, pág. 62.
48 NANCY, J-L., op. cit., pág. 17. os destaques são do autor.
49 ECO, U. - Os Limites da Interpretação, págs. 35-36 e 41.
50 Crítica num sentido foucaultiano: “A parte crítica da análise liga-se aos sistemas de envolvimento do discurso; procura detectar, destacar esses princípios de ordenamento, de exclusão, de rarefacção do discurso” FOUCAULT, M. - A Ordem Do Discurso, pág. 50-51.
51 Op. cit., pág. 51.
52 Utilizaram-se nesta comparação intertextual as versões que formam parte das colecções dos Museus de: Museu Nacional Bayrisches de Munique, Alemanha; Museu de Gotemburgo, Suécia e do Museu de Belas Artes de Budapeste, Hungria.
53 RIPA, C., op. cit., pág. 33.
54 Jorge Calado, comentando a iconografia de Salomé, aponta: “Escondida na peça de Wilde (Oscar) e na ópera de Strauss há também uma justificação das atitudes do pintor do fim do século XIX. Tanto na peça como a ópera são repositórios de objectos preciosos: jóias, enfeites, penas, frutos exóticos, criaturas tropicais; Wilde enumera-os e Strauss – que disse um dia poder descrever musicalmente uma colher de prata, se necessário – encontra para eles um equivalente sonoro.” CALADO, J., in Salomé, Teatro Nacional de São Carlos, Lisboa, 1979, pág. 28. Há neste texto alusões a operações de intertextualidade e de transtextualidade evidentes com relação à conotação interessada que os adereços utilizados por Salomé demonstrariam. Primeiramente, referências intertextuais indicando as atitudes dos pintores do séc. XIX, que obviamente tem nas obras visuais de séculos anteriores esquemas representativos que implicam um determinado discurso, e que as “Salomés” de Munique, Gotemburgo e Budapeste claramente encarnam. Como também relações transtextuais entre a literatura, a pintura e a música que enriquecem e consolidam esta visão discursiva.
55 Veja-se, por exemplo, a «Judite» propriedade do Museu Kunsthistorisches de Viena ou a versão propiedade da Metropolitan Museum of Art of N. York.
56 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. - O Anti-Édipo, pág. 31.
57 NANCY, J-L., op. cit., pág. 14.
58 O facto de alguns historiadores apontarem a possibilidade do pintor Lucas Cranach pertenecer a alguma das seitas heréticas Adamitas não introduz nada novo a esta representação ou texto, ela «a partir ou do interior» do seu próprio dispositivo pictórico configura zonas de densidade ou de intensidade capazes de permitir mais do que uma leitura. E como diz U. Eco: “embora em todo este livro se insista na relação entre intérprete e texto, em detrimento do autor empírico, nem por isso afirmo que seja indigno de atenção o estudo da psicologia do autor. Considero-o irrelevante para uma teoria semiótica da interpretação, mas não certamente para uma psicologia da criatividade.” ECO, U. - Os Limites da Interpretação, pág. 137.