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Las Meninas

1. «Las Meninas» de Foucault


O pintor, ligeiramente afastado do quadro, contempla o modelo; talvez se trate de dar um último toque, mas também é possível que ainda não tenha aplicado a primeira pincelada. O braço com que segura o pincel está voltado para a esquerda, na direcção da paleta, e detém-se, um instante, entre a tela e as cores. A mão hábil está suspensa do olhar; e o olhar, por sua vez, repousa no gesto imobilizado. Entre a fina ponta do pincel e o gume do olhar, o espectáculo vai libertar o seu volume.1

Assim começa Michel Foucault o seu belíssimo e, criticado, texto «Las Meninas» que introduz o seu livro «As palavras e as coisas». Nesta precisa e literária descrição parecem ser colocadas todas as questões que envolvem o acontecimento da pintura: um acto de pura execução que contém momentos de actividade e distância, onde se sucedem momentos de experiências, existências e explicações, as quais cruzam o âmbito das competências da pintura, assim como o quadro, o modelo, os materiais de trabalho, os temas e os géneros, as teorias ou disposições disciplinares, a actividade manual e o olhar. Toda uma série de factores e elementos, de uma soberana precaridade que, progressivamente, pela acumulação dos gestos empreendidos «a partir ou do interior» do acontecimento da pintura, se fixam num suporte. Desta forma, o texto de Foucault pode aproximar-se, ainda que com reservas, das investigações que desenvolvem uma das frases célebres proferidas perante «Las Meninas», de autoria de Luca Giordano: «esta é a Teologia da pintura», ou seja, aponta-se uma suposta culminação de um saber sobre o propriamente pictórico.
A outra linha de investigação abre-se com a expressão de Théophile Gautier: «Mas, onde está o quadro?» a qual deixa surgir a ideia de uma atitude um tanto passiva por parte do pintor, que, simplesmente, se haveria limitado a reproduzir uma realidade de forma magistral, mas, sem intervir nela, como se de uma fotografia se tratara. Evidentemente, não se pode esquecer que estas duas frases não são mais do que isso. Só duas frases e não investigações teóricas sobre «Las Meninas» e, se bem que o texto de Foucault já não é uma simples frase, também não é uma investigação propriamente dita, quer dizer, um texto enquadrado por normas de investigação académica. «Las Meninas» de Foucault, por manifesta vontade do seu autor, é um texto mais próximo do âmbito literário que do espaço da investigação dita científica. Isto implica que o texto foucaultiano deve considerar-se sempre com algumas reservas, isto é, deve aproximar-se ou colocar-se preferencialmente no contexto do discurso do filosofo francês e relativizar as suas implicações relativamente aos discursos da história ou da crítica da arte; nesse sentido, é extremadamente revelador a maneira como Gilles Deleuze inicia o seu texto acerca de Foucault2.
«Las Meninas» de Foucault não são «Las Meninas» de Velázquez e, com toda certeza que Foucault sabia isso, de facto o texto foucaultiano procura descaradamente desprender-se do autor do quadro, não é casual que no texto se nomeie somente três vezes o pintor, como também, não deixa de ser sintomática a insistência de Foucault em indicar uma «estrutura» tripla, compartida numa febril movimentação de intercâmbio de identidades, pelo rei, o pintor e o espectador. E da qual, seguindo a ideia de Foucault, se empreende a representação e, talvez também tome sentido a «representação da representação clássica». São esses regimes de enunciação e de visibilidade que Foucault sublinha e que tenta relacionar e fazer funcionar com uma série de sinais disponíveis em «Las Meninas» de Velázquez para configurar uma estratégia «literária» que procura distanciar-se de qualquer intenção de institucionalizar uma interpretação. Foucault procura colocar-se entre as palavras e as coisas, mais que «o significado» de «Las Meninas» interessa-lhe «permanecer no infinito da tarefa»3 do apuramento dos processos e condições da significação.
As críticas ao texto faucaultiano centram-se, de forma preponderante, no facto de Foucault haver indicado um lugar de fora do quadro, extremamente, disputado pelo pintor, pelo modelo e pelo espectador:
Este centro é simbolicamente soberano, pois é ocupado pelo rei Filipe e a sua esposa. Mas a sua importância advém-lhe sobretudo da tripla função que ocupa em relação ao quadro. Nele vêm sobrepor-se exactamente o olhar do modelo no momento em que o pintam, o do espectador que contempla a cena e o pintor no momento em que compõe o seu quadro (…) Estes três olhares encontram-se num ponto exterior ao quadro, ou seja um ponto ideal em relação ao que é representado, mas perfeitamente real, porque é a partir dela que se torna possível a representação. (…) E, no entanto, esta realidade é projectada no interior do quadro, projectada e difractada em três figuras que correspondem às três funções desse ponto ideal e real. São elas: à esquerda, o pintor (…); à direita, o visitante, (…); no centro, finalmente o reflexo do rei e da rainha4

Acusa-se Foucault de um erro fundamental que se relaciona com o facto de o ponto de fuga estar no cotovelo direito da personagem que está representado no vão da porta aberta ao fundo da habitação5 e, desta maneira, é impossível que o reflexo do espelho seja causado por «alguém» que se encontre frente a ele. Pelas leis da perspectiva, ou seja, pelas normas da representação (clássica?) que esta introduz, o reflexo do espelho (aceita-se aquela imagem como um espelho) estaria causado por coisa, pessoa ou imagem colocada, aproximadamente, na zona central da grande tela que os espectadores vêm de costas, e na qual, se supõe trabalha o pintor pintado. Para Joel Snyder, absolutamente crítico com respeito ao texto foucaltiano, este erro bastaria para desacreditar todo o escrito de Foucault acerca de «Las Meninas»6:
Las Meninas no nos muestra el punto de vista adoptado por el rey o la reina ausentes: el cuadro no está proyectado desde un punto directamente opuesto al espejo. Este hecho es, por sí sólo, suficiente para destruir los argumentos de Foucault7

Pode-se «destruir» um texto com marcadas intenções literárias? Quer dizer, é pertinente julgar os «argumentos» de um qualquer texto de ficção de acordo com as «leis» de um determinado saber técnico?
Tecnicamente, e na perspectiva da frase «esta é a teologia da pintura», a crítica de Snyder é ajustada, os conhecimentos disciplinares são claros nesse sentido. O quadro não foi projectado a partir de um ponto oposto ao espelho pintado, pelo que numa instância de investigação com normas claramente delimitadas a proposição foucaultiana, relativamente ao lugar ocupado por essa trindade, surge de uma leitura técnica equivocada em relação à construção do quadro mas, de qualquer modo e, em vista das características do texto de Foucault, parece excessivo desautorizar a totalidade de um texto que não tem pretensões de cientificidade, pelo contrário, as suas intenções procuram explorar os aspectos da ficção como possibilidade de credibilidade, isto é, reconstruir através da ficção aquilo que fica de fora dos «factos» e das informações de carácter notarial que rodeiam, tanto, o quadro como Velázquez. É o próprio Snyder que chama a atenção no seu texto à insistência e obstinação por parte de Foucault em acentuar repetidamente a sua indicação nessa estrutura composta por três elementos.
Primeiramente, de um modo manifestamente irónico:
Al mirar «Las Meninas» nos vemos arrastrados, nos dicen, a una recapitulación sin fin, caminando sobre una cinta de Moebius pictórica, jugando un juego vertiginoso de topoi movedizos – primero estamos aquí, luego allí, luego más allá, luego aquí otra vez –, intercambiando personalidades, luego géneros, luego números: yo soy yo; yo soy Velázquez; yo soy el rey; yo soy la reina; yo soy el rey y la reina; yo soy yo otra vez.8

E, posteriormente, de um modo «subtilmente» irónico:
El análisis de Foucault tiene algo casi teológico. El punto de proyección que es el primer principio, el sine qua non de la perspectiva pictórica es, por difinición, una unidad absoluta. Pero en la interpretación de Foucault es también una pluralidad, una «triplicidad». Este punto pertenece al rey y la reina, pero también pertenece al autor de lo pintado y, finalmente, a cada uno de los espectadores. Nuestra fascinación por el cuadro reside, se nos dice, en la unidad de esa trinidad y en la trinidad de esa unidad.9

Não é possível discernir com nitidez o lugar da “queda-relacionada” desse julgamento irónico realizado no texto de Snyder, mas evidentemente deve ter algum. No entanto, independentemente da intenção irónica destes textos, há um facto que se destaca e que motivou esse julgamento irónico, é a insistência de Foucault em definir e configurar esse lugar com três elementos. Porquê? O que motivou tão insistente tentativa? Possíveis respostas encontram-se no próprio texto de «As palavras e as coisas» como também no discurso foucaultiano. O texto «Las Meninas» inicia o livro de Foucault sem explicação nenhuma, irrompendo como um reflexo na argumentação de «As Palavras e as Coisas», está em primeiro lugar como se de uma introdução se tratara, mas, na realidade não cumpre com as normas estabelecidas para uma introdução numa investigação de índole científica.
Pode-se, então, descrever esse texto como uma introdução. A ambiguidade assumida desde o princípio pelo seu autor parece ser uma sinal evidente das intenções (politicamente) literárias do mesmo, mais ainda, o texto de «Las Meninas», que surge como um reflexo na totalidade do texto, parece ser pela sua vez, uma demonstração, um exemplo metodológico das considerações apontadas por Foucault no próprio texto «Las Meninas»:
Trata-se de duas coisas (as palavras e o visível) irredutíveis uma à outra: por mais que se tente dizer o que se vê, o que se vê jamais reside no que se diz; por mais que se tente fazer ver por imagens, por metáforas, comparações, o que se diz, o lugar em que estas resplandecem não é aquele que os olhos projectam, mas sim aquele que as sequências sintácticas definem. (…) Porém, se quisermos manter aberta a relação da linguagem e do visível, se quisermos falar não contra mas a partir de tal incompatibilidade, de tal modo que fiquemos o mais perto possível de uma e do outro, então é necessário pôr de parte os nomes próprios10
O texto «Las Meninas» parece reproduzir esta metodologia indicada no seu interior. É um processo da passagem de uma interioridade a uma exterioridade e, nesse procedimento metodológico põem-se de parte «os nomes próprios», isto é, as certezas.
Foucault finaliza o seu texto com uma espécie de jogo de palavras onde se repetem e se cruzam noções de: representação, representação clássica, representação da representação clássica, pura representação e, onde, «Las Meninas» de Velázquez são colocadas como ponto culminante desse jogo, daí que o texto foucaultiano possa ser relacionado com a frase «esta é a teologia da pintura» e, deste modo, possa ser criticado o erro na atribuição do ponto de fuga em «Las Meninas» de Velázquez. No entanto, deve-se considerar a forma como Foucault expressa esta culminação do saber pictórico, escrevendo:
Talvez este quadro de Velázquez figure como que a representação da representação clássica (…) Mas aí, nessa dispersão que ela ao mesmo tempo recolhe e exibe, é imperiosamente indicado em todas as partes um vazio essencial (…) Este sujeito mesmo – que é o Mesmo – foi elidido. E liberta, finalmente, dessa relação que a acorrentava, a representação pode oferecer-se como pura representação.11

Foucault ao salientar: «Talvez este quadro (…) figure como a (…) representação da representação clássica», não o assegura, simplesmente, indica uma situação e, logo introduz a ideia que esteve sempre transitando no seu texto de forma «diagonal» e nunca directamente: «E liberta, finalmente, dessa relação que a acorrentava, a representação pode oferecer-se como pura representação». Ao considerar a utilização da perspectiva como um factor determinante para entender a noção da «representação clássica», pois então, efectivamente, «Las Meninas» de Velázquez estão construídas numa cuidada perspectiva monofocal, de facto, não há dúvidas que a intenção de Velázquez foi reproduzir com a maior precisão possível todo o enquadramento daquela sala do palácio12, o quadro reproduz de forma precisa, mas, totalmente fictícia – uma vez que é só uma pintura e Velázquez faz alarde desse facto –, uma sala do Alcázar de Madrid. Ficção colocada para ser olhada como se a cena que representa realmente tivesse tido lugar. Velázquez através da ficção ou simulação pictórica coloca ou indica os hipotéticos lugares nos quais se misturam o lugar ou lugares a partir de onde se pintou «Las Meninas» e o lugar ou lugares a partir dos quais foi vista a sala do Alcázar de Madrid, seja pelo pintor Velázquez, pelo rei Felipe IV, pela rainha Mariana, pela infanta Margarita, pela Maribárbola, pela doña Maria Agustina Sarmiento, pela doña Isabel de Velasco, pelo Nicolás de Portosanto ou Pertusato, pelo José Nieto Velázquez, pela doña Marcela de Ulloa, pelo «guardadamas», do qual não se conhece o seu nome, pelo cão, do qual, também, se desconhece o seu nome e, finalmente, por um qualquer sujeito ou visitante que passou alguma vez por essa sala do Alcázar de Madrid no ano de 1656 no momento em que este quadro estava a ser pintado. Todos estes olhares das pessoas e do animal, cuja existência real está devidamente documentada e creditada, talvez com excepção do cão, estão, de forma ficcional presentes na pintura, da qual, alguns destes duplos pictóricos também olham para o lugar a partir do qual eles olhavam. Mas olhavam o quê? De todas as pessoas nomeadas que estiveram naquela sala do Alcázar de Madrid, se tem um testemunho concreto e específico de uma delas: o quadro de três metros e dez centímetros de altura por dois metros e setenta e seis centímetros de largura, actualmente exposto no Museu do Prado em Madrid.
Existe um indício sugestivo mas, duvidoso, uma vez que surge «a partir ou do interior» da própria ficção pictórica. A única personagem que foi retratada no quadro realizando uma actividade concreta e específica é o pintor pintado que estaria a pintar a enorme tela pintada no quadro exposto no Museu do Prado e que, ademais, está a olhar para fora do quadro pintado. Mas, nenhuma das personagens pintadas olha o que esse pintor pintado estaria fazendo, quer dizer, por muito extraordinária que seja a representação pictórica, por muito que o virtuosismo técnico simule com pasmosa precisão as coisas e as personagens do mundo, parece ser sempre insuficiente em comparação com o interesse que desperta a realidade que está de fora do espaço da representação, para além da ficção pictórica.
O espelho pintado ao fundo da habitação de «Las Meninas» parece indicar o motivo de interesse das personagens pintadas, poder-se-á dizer que é a razão dos olhares, tanto das personagens como das pessoas que estiveram alguma vez nessa sala do Alcázar de Madrid. É a presença real, o rei e a rainha, os que organizam e justificam os olhares, seja esta uma presença simbólica ou efectivamente real, é o poder da realeza, é, em definitivo, o poder, quem organiza e justifica a representação clássica. A perspectiva e o seu ponto de projecção, condição e princípio sine qua non da perspectiva – como a chamou Joel Snyder –, é a representação simbólica de uma visão homogénea, de um poder absoluto e central o qual, hierarquicamente, distribui os lugares para os seres, as coisas e as palavras13. A representação clássica organiza-se à volta deste poder, não é necessária a presença real, de carne e osso, do rei e da rainha, para exercer a autoridade. O poder conta com diversos mecanismos, cerimónias, símbolos, instrumentos, privilégios, que permitem reclamar a atenção e a obediência dos súbditos e crentes.
«Las Meninas» de Foucault organizam-se à volta desta situação e, Joel Snyder, tem razão, ainda que sem entendê-lo, quando escreve:
El análisis de Foucault tiene algo casi teológico. (…) Pero en la interpretación de Foucault es también una pluralidad, una «triplicidad». (…) Nuestra fascinación por el cuadro reside, se nos dice, en la unidad de esa trinidad y en la trinidad de esa unidad.14
A estrutura de três elementos a que alude Foucault, mas que nunca explicita no seu texto «Las Meninas», são as dimensões que organiza no seu conceito de dispositivo, as dimensões do saber, do poder e da subjectivação, representadas respectivamente pelo pintor e o seu conhecimento específico sobre o saber disciplinar, pelo rei, personificação concreta do divino e, pelo anónimo e circunstancial espectador que perante o quadro balbucia uma leitura, quer dizer, exige ser tomado em consideração. Foucault a seu modo «diagonal» como referiu Deleuze o exprime do seguinte modo:
Quando a história natural se transforma em biologia, quando a análise das riquezas se volve economia, quando sobretudo, a reflexão sobre a linguagem se converte em filologia e se extingue o discurso clássico em que o ser e a representação encontravam o seu espaço comum, então, no movimento profundo de uma tal mutação arqueológica, surge o homem com a sua posição ambígua de objecto para um saber e de sujeito que conhece: soberano submetido, espectador olhado, ele surge aí, nesse lugar do rei, que lhe atribuíam antecipadamente as Meninas, mas onde durante tanto tempo a sua presença real foi excluída. Como se, nesse espaço para o qual estava virado inteiramente o quadro de Velázquez, mas que ele, no entanto, só reflectia mediante o acaso de um espelho e como que abusivamente, todas as figuras de que se suspeitara a alternância, a exclusão recíproca, o entrelaçamento e a ofuscação (o modelo, o pintor, o rei, o espectador) cessassem de súbito a sua imperceptível dança, se petrificassem numa figura plena e exigissem que fosse enfim referido a um olhar de carne todo o espaço da representação.15
Para Foucault «esta teologia da pintura» não é só o ponto culminante da denominada «representação da representação clássica», é também, a expressão culminante dos processos de exclusão que o poder clássico realizava. Circulam por esta representação intenções políticas as quais são postas à luz, segundo Foucault, no momento em que o discurso clássico abre a possibilidade para que a representação e o sentido do ser, que compartilham até então o mesmo espaço, talvez sem querê-lo, deixem entrar um terceiro que, sem sabê-lo, ocupa um espaço «real», não porque determinado por uma aplicação técnica, mas sim, porque é o espaço simbólico do poder real e do uso intencionado do conhecimento disciplinar do pintor a partir dos quais se organiza e tem sentido a representação e o discurso clássico. O problema não é ocupar ou partilhar o lugar do rei no espelho pintado ao fundo, impossibilidade por demais manifesta, uma vez que parafraseando Magritte, não é um espelho! O problema é que já não há rei, não basta uma suposta presença simbólica, nem a idealização alegórica num «espelho de príncipes»16, o poder começa a deslocar-se, a descentrar-se e a razão de ser, o sentido da representação, deixa de estar organizado e orientado por um discurso hegemónico, discurso que entra em crise, justamente, pela intromissão de uma personagem totalmente fictícia, mas produzida ou requerida pelo próprio quadro de «Las Meninas». É a irrupção triunfante da ficção que desenvolve processos de credibilidade de um modo «ad infinitum», uma vez que o tema, o motivo do quadro, melhor dizendo, os possíveis temas, os possíveis motivos, se colocam à disposição do espectador fictício em igualdade de condições, dir-se-á de forma distanciada, para que este, em definitivo, assuma a responsabilidade de produzir a sua própria interpretação. É aqui que se pode inscrever a frase de Théophile Gautier «Mas, onde está o quadro?». O modo como o quadro foi construído e pintado procura salientar o aspecto casual e espontâneo do momento, ainda que a personagem central seja um retrato da infanta Margarita, o relevante desse momento está no aspecto quotidiano em que o retrato se inclui, na sua imagem de familiaridade com que as personagem se deixam ver (não é por acaso que tinha o título de «La Familia» de Felipe IV). «onde está o quadro?» é uma afirmação «fotográfica» no sentido em que se capta um momento qualquer e não um «instante mais favorável» de um acontecimento. De facto, «Las Meninas» poderiam ser vistas, também, como um não-acontecimento elevado ao estatuto de acontecimento por uma cuidada e estudada construção na sua perspectiva e na sua execução pictórica. Deve-se salientar, até à exaustão, que detrás de um olho ou de uma câmara há sempre alguém que decide para onde, como e porquê olhar ou apontar o objectivo fotográfico, e esse «alguém» é, neste quadro, não somente o saber e o poder, mas também o espectador fictício, quem pode ocupar o lugar ou lugares a partir de onde alguma vez foi olhado o quadro e a sala do Alcázar de Madrid. Em «Las Meninas» de Velázquez encontra-se ou dá-se ao espectador a possibilidade de elaborar a sua própria interpretação. E perde-se, diferenciando-se, deste modo do retrato da Salomé, o controle que o poder conseguia quando organizava o mundo a partir de um critério único, homogéneo e hegemónico, onde o saber, o poder e a subjectivação eram orientados por uma demanda de obediência que se configurava pela proximidade privilegiada com a Verdade. Doravante as estratégias do poder serão mais e melhor diversificadas. Talvez Foucault, tivesse o seu momento utópico quando termina o seu texto com a frase, «E liberta, finalmente, dessa relação que a acorrentava, a representação pode oferecer-se como pura representação», proposição que volta a exprimir de um outro modo, mas igualmente, convicto:
Porque agora já não há essa palavra primeira, absolutamente inicial com que se fundava e limitava o movimento infinito do discurso: doravante, a linguagem vai crescer, sem princípio, sem termo e sem promessa. É o percurso desse espaço vão e fundamental que traça, dia a dia o texto da literatura.17

Sabe-se pelas argutas indicações foucaultianas como pela deconstrução derridiana que a representação não é, e nunca será «pura» ou desinteressada. O texto «Las Meninas» de Foucault, apesar do seu erro evidente na localização do ponto de projecção, coloca questões de interesse para as complexas relações entre o saber, o poder e a subjectivação que se verificam na produção das proposições disciplinares, neste caso específico, os fenómenos nunca inocentes da representação pictórica. Poderia recriminar-se Foucault por ter jogado perigosamente entre «interpretação e uso»18 no seu texto de «Las Meninas», ou seja, teria usado o quadro de Velázquez simplesmente como um suporte para as suas ideias. No entanto, é preciso salientar que estas também não estão explicitamente expostas no seu texto «Las Meninas», o exemplo mais cabal é o facto de J. Snyder não as ter percebido nem considerado. Por outra parte, existem textos sobre «Las Meninas», nos quais, sublinhando o erro de Foucault, se desenvolvem finalmente certas semelhanças de «interpretação» como é o caso do texto de Leo Steinberg:
La situación de sus reflejos (de Felipe IV e a rainha Mariana) sobre el espejo de la pared del fondo confirma que la pareja real queda a nuestra izquierda. Consecuentemente, esas miradas que apuntan hacia este lado del cuadro deben obedecer a su presencia más que a la nuestra. Pero nosotros también estamos implicados, porque nos vemos a nosotros mismos mirando. (…) …lo que uno encuentra en «Las Meninas» no es sólo un objeto enmarcado, una hermosa superficie, un espacio ilusurio, un evento simulado, aunque el cuadro sea todo esto. Más bien la pintura se conduce del mismo modo que una presencia vital. Crea un encuentro. Y como en cualquier encuentro vivo, cualquier intercambio vital, la obra de arte se convierte en el polo alternativo en una situación de autorreconocimiento recíproco.19

A pertinência do texto foucaultiano radica na sua estratégia literária, de tal modo que o erro técnico só tem sentido num contexto relativamente ao qual Foucault procura por todos os meios afastar-se, mas esse afastamento não é inocente, já que ao mesmo tempo que realiza essa tomada de distância relativamente às normas estipuladas para uma investigação, procura também indicar as linhas de fractura que precipitaram a falência dos discursos com aspirações absolutas. «A teologia da pintura» e o «Mas, onde está o quadro?» contêm na sua organização discursiva, tanto, os instrumentos que permite-lhes adaptar-se num qualquer discurso com pretensões hegemónicas como também os mecanismos que originaram as suas quedas. Há nessa atitude, muda, indicativa e desprendida de Foucault uma clara reminiscência do gesto indicador, instaurado muito antes, por Duchamp. Muda, porque Foucault coloca as suas afirmações no jogo sempre opaco da ficção, indicativa, porque põe à luz questões básicas e desprendida, porque uma vez aberta a questão já não está aí para resolvê-la. Duchamp era, talvez, mais directo ou, noutras palavras, o dispositivo da arte permitia-lhe afirmar sem explicar. A sua frase «na arte não há soluções porque não existem os problemas» demonstra com clareza o estilo polémico e provocador que instaurava pela simples presença da sua assinatura. Daí a necessidade sentida por Foucault em procurar uma proximidade com a literatura, com os dispositivos da ficção.
O assunto que requer ser aclarado relativamente ao texto «Las Meninas» de Foucault, refere-se ao grau de pertinência ou justeza na eleição do quadro de Velázquez para colocar as questões indicadas pelo filósofo francês, não se discutindo a eficácia da conceptualização foucaultiana, da qual, o «curriculum» de «As palavras e as coisas» demonstra exemplarmente. O grau de pertinência tem que ver com a possibilidade de deslindar a viabilidade das intenções interpretativas que o texto «Las Meninas» promove relativamente ao próprio quadro de Velázquez. A dúvida é esta. Era estritamente necessário a utilização de «Las Meninas» para escrever aquilo que Foucault escreveu? Por outras palavras, É o quadro de Velázquez portador privilegiado, para não dizer exclusivo, das indicações atribuídas por Foucault?


2 «Las Meninas» de Velázquez como dispositivo distanciado

Leo Steinberg, aponta o seguinte: «Para decirlo de otro modo: los rompecabezas ontológicos o epistemológicos que tratan de resolverse en «Las Meninas» están planteados en pinturas más antiguas con muchísimo menos aparato»20 e posteriormente enumera uma série de pinturas nas quais se apresentam, tanto o autoretrato com espelho, como o olhar para fora do quadro enquanto «se realiza» uma actividade plástica. Steinberg demora-se mais na descrição de uma pintura de Frans Floris (1516 -1570) «creada originalmente (en 1556) para la sede del club del Gremio de Pintores de Amberes»21 e escreve:
El cuadro muestra a un pintor, presumiblemente un autorretrato del propio Floris, sentado ante su caballete, trabajando sobre una tabla de la que sólo vemos la parte trasera. No sabríamos qué o a quién está pintando si no fuera por la incongruente presencia del simbólico buey de San Lucas a sus pies. La plácida bestia lo identifica como San Lucas, patrón de los pintores, de modo que su mirada hacia aquí, desviada de la tabla para estudiar a su modelo, sólo puede dirigirse a la Madonna con el Niño. (…) Al mismo tiempo, esta mirada nos hace saber que la Virgen y el Cristo están con nosotros, al igual que el rey y la reina están «con nosotros» cuando nos ponemos frente a «Las Meninas». Resulta, pues, que aquello que los intérpretes recientes han considerado lo más extraordinario de Velázquez está patentemente presente en estos precedentes del siglo XVI. Y aún así, «Las Meninas» siguen siendo incomparables.22
Este autor, não especifica a quem se refere quando alude que os quebra-cabeças ontológicos ou epistemológicos estariam tratados antecipadamente por outras pinturas, no entanto, a sua detalhada descrição do quadro de Floris, não parece deixar dúvidas quanto à intenção e sentido desta representação, dir-se-á que a interpretação avançada por Steinberg não deixa muito lugar para o debate de questões epistemológicas ou ontológicas. Por outro lado, esta mesma interpretação configura-se a partir de premissas estáveis orientadas por um saber claramente centrado e obediente. A representação alegórica de São Lucas, sublinhada pela presença didáctica do boi, o olhar dirigido para fora do espaço da representação, que pode ter, destaca-se no texto, somente um único destino: «la Madonna y el Niño», confirmando, deste modo, a «presença» da «Virgen y el Cristo» que estão connosco, da mesma maneira que, segundo Steinberg, estão connosco o rei e a rainha quando olhamos «Las Meninas». São condições e indícios concretos e razoáveis que minimizam qualquer possibilidade de discussão «ontológica» ou «epistemológica», uma vez que o quadro confirma com clareza a dita leitura, não havendo equívoco possível. Colocar esta representação de Frans Floris em pé de igualdade com «Las Meninas», no que se refere aos «rompecabezas ontológicos o espistemológicos», é forçar uma interpretação a partir de sinais que no espaço da representação e, também fora do mesmo, são claramente e intencionalmente configurados pelo discurso clássico da representação, discurso clássico que entrava em crise em «Las Meninas». Por isso a expressão «Talvez este quadro de Velázquez figure como que a representação da representação clássica»23 de Foucault.
O rei e a rainha não estão connosco, melhor dizendo, só é possível «estar com eles»24 aceitando-se de forma obediente o discurso da representação clássica, pondo de lado o que, justamente, se abre e se dilui em «Las Meninas», a noção da «presença-ausência» que organizava a representação. Desta forma, e por causa desse «vazio essencial»25 que instauram «Las Meninas», é que esta pintura e, nenhuma outra! pode ocupar o lugar que ocupa no texto de Foucault. A partir de uma perspectiva do dispositivo pictórico e fazendo uma comparação com a Salomé de Lisboa, dir-se-á que essa fractura, esse «vazio essencial» que promovem «Las Meninas» evita a clausura a que foi submetida Salomé de Lisboa.
De «Las Meninas» sabe-se que estão construídas a partir de uma propositada, cuidada e rigorosa perspectiva monofocal. Que o quadro foi pintado numa determinada sala do Alcázar de Madrid destruída no incêndio de 1734. Que as representações das pinturas penduradas nas paredes, pela sua vez, representadas na pintura de Velázquez seguem, exactamente, a ordem que os antigos inventários do palácio lhes atribuem26. Conhece-se, pormenorizadamente, a carreira funcionária de Velázquez desenvolvida a partir da sua nomeação como pintor do rei no ano de 1623, os livros que Velázquez tinha na sua biblioteca particular, as suas aspirações nobiliárias que motivaram que muitos dos seus colegas pintores mentiram nas suas declarações acerca do modo como era assumida a actividade pictórica por Velázquez. Da sua conhecida amizade com o rei Felipe IV dão conta os relatos de Francisco Pacheco e de Antonio Palomino, os quais, descrevem uma série de situações referidas ao pintor e à gestação de «Las Meninas». Deve-se a Palomino, o seu primeiro biógrafo, a descrição exaustiva do quadro, a qual envolve informações como das identidades dos personagens retratados, do lugar onde se pintou e colocou o quadro uma vez terminado27, como também, a indicação do que estava pintando o pintor pintado de «Las Meninas». Segundo Palomino, um retrato duplo de Felipe IV e a rainha Mariana.
Uma ideia de interesse que os relatos de Pacheco e de Palomino projectam relativamente à amizade do monarca e do pintor, é que muito provavelmente, este quadro de «Las Meninas» foi um trabalho discutido, comentado e visitado regularmente pelos participantes desse não-acontecimento representado mas, acontecimento da realização da pintura, e cuja intenção com toda certeza conversaram Velázquez e Felipe IV. Situações discursivas evidentemente para sempre perdidas mas que, no entanto, as informações anteriormente expressas podem sugerir os seus tópicos, os seus temas, as suas relações, os seus interesses e as intenções das mesmas. Desta forma, deve entender-se este colocar em cena de um não-acontecimento como a maneira de representar uma série de acontecimentos relacionados entre si mas, ao mesmo tempo, funcionando de forma autónoma, os quais, pela decisão do pintor, e talvez, do rei, confluem nessa sala do Alcázar de Madrid.
Esta investigação tenta salientar, como já se fez para a Salomé de Lisboa, alguns dos lugares por onde circulam essa diversidade de factores, os quais se podem agrupar perfeitamente nas três dimensões indicadas por Foucault, o poder, o saber e a subjectivação, para assim indicar os seus relacionamentos configuradores de uma determinada manifestação disciplinar que, como tem sido insinuado nos títulos, é o distanciamento.
Algumas das interpretações de «Las Meninas» salientam os aspectos de reivindicação do ofício da pintura, o quadro tem indícios concretos e suficientes para demonstrar a pertinência dessa interpretação, mais ainda, situa-se ao rei, a sua presença-ausência simbólica, como cúmplice dessa defesa corporativa, uma vez que são suficientemente conhecidas as opiniões de Felipe IV28 a esse respeito, pelo que não parece lógico que Velázquez tenha realizado a sua «defesa» perante o poder do rei, mas sim, perante o poder burocrático que constituía a sua corte. Por outro lado, «Las Meninas» é uma representação, indiscutível também, de uma personagem da realeza, é uma representação do poder e, nesse sentido, podem ser entendidas as críticas de Félix da Costa que qualificou de impertinência a ousadia de Velázquez de autoretratar-se conjuntamente com a infanta Margarita e a presença-ausência de Felipe IV e da rainha Mariana no espelho pintado. No entanto, o acontecimento, a realização desta pintura foi compartilhada, deve ter sido com toda segurança autorizada pelo poder. A amizade de Velázquez com Felipe IV, provavelmente permitia alguma flexibilidade no protocolo, mas sempre num nível privado e nunca numa instância pública como é uma representação pictórica. As operações discursivas entre Velázquez e o rei sobre «Las Meninas», devem ter como possíveis referências a pintura (o saber) e o poder do rei (o poder), mas, num âmbito estritamente privado (a subjectivação). As suas operações discursivas podem associar-se a ruminações, a actividades «linguajeiras» operando numa exterioridade, onde são eles mesmos e as suas «actividades», a pintura para Velázquez e, o poder para Felipe IV, os motivos dos seus solilóquios. Tanto Velázquez como Felipe IV desprendem-se, da pintura o primeiro, e do poder o segundo, para olhar de forma distanciada, como se fossem outros, como se fossem apenas simples espectadores desinteressados das suas próprias vidas e, pondo a nu, um perante o outro, as suas experiências, existências e explicações das suas coordenações de acções recursivas consensuais operando na exterioridade. Daí que o único lugar possível de indicar o teor das suas experiências discursivas seja um espaço híbrido onde se mistura o ateliê do pintor e o domínio da confiança quotidiana do rei representada pelo retrato da infanta Margarita e pela presença dos serventes da corte. Deste modo, é autorizada a representação pública do pintor e do rei num mesmo espaço, como se da «mise-en-scène» da história mítica de Apeles e Alexandre Magno29 se tratasse mas, sublinhando enfaticamente que é uma sala do Alcázar de Madrid onde se pintou um determinado quadro com a presença específica e documentada das pessoas que serviram de modelos ao pintor.
Não parecem existir indícios de julgamento irónico, nem relativamente à pintura, nem no que diz respeito ao poder, parecendo ser mais perceptível a presença do distanciamento neste dispositivo pictórico. Presença política, evidentemente, mas sem nenhum interesse em proclamar um sentido homogéneo e absoluto. Dir-se-á, que se colocam as questões, que se faz uma eleição, mas essa eleição não se transforma numa exclusão ou discriminação. Este espaço híbrido proporciona a possibilidade de uma coexistência pacífica das diferenças, as hierarquias momentaneamente ficam suspensas, neste espaço sucedem-se, um atrás do outro, os movimentos de perda e de recuperação até voltar a sair ou entrar, novamente, no espaço público e protocolar do dia-a-dia. Por agradáveis e interessantes que possam ser as ruminações deve-se sempre voltar à linguagem, sendo o retorno o modo de dar sentido a essas operações discursivas da exterioridade. A personagem do fundo da sala representada em «Las Meninas» parece encarnar essa procura, quer dizer, a resistência que o seu corpo oferece à luz prova a sua corporeidade real e sólida, a sua aparente dúvida em ficar ou sair não faz mais que salientar o inevitável do retorno, há que voltar e resistir, a vida é uma resistência que se oferece ao corpo. A personagem de José Nieto Velázquez é, sem dúvida, a mais real e, talvez por isso, é a que está mais longe da cena que acontece. Aquela porta que abre será o destino de todas as personagens retratadas.
O distanciamento inicia, na sua ruminação, um movimento de aproximação aos elementos plásticos, às habilidades manuais através do pólo operacional mão-grafia-olhos, mas há diferença do ensimesmamento, não fica nesse si mesmo da pintura, nem faz qualquer julgamento acerca das explicações desse movimento como a ironia, limitando-se a sublinhar a possibilidade. Esse movimento desprendido que culmina com a queda-distanciada faz-se, no entanto, «a partir ou do interior» do acontecimento da pintura e não sobre o dito acto, uma vez que se empreende sempre a partir do pólo operacional mão-grafia-olhos. É uma actividade prática e operacional determinada, se está a pintar e paralelamente se inicia o movimento de tomada de distância. O distanciamento não produz um código, como o ensimesmamento, porque o seus movimentos de tomada de distância podem ser de diferentes velocidades, deste modo, o seu movimento de retorno não tem sempre a mesma cadência, rumor e velocidade, não se podendo definir uma exclusiva e única estabilidade, visto que os momentos de perda e recuperação se sucedem constantemente. Tem, tal como a personagem do fundo da sala de «Las Meninas» uma posição de estabilidade aparente. O destino do distanciamento é sair, mover-se, viajar, a sua estabilidade aparente é um bordo de onde precipitar-se na queda-distanciada. E, no entanto, deixa marcas. Este pólo operacional mão-grafia-olhos30 deixa sempre marcas, rastos, dos seus gestos, das suas incisões, das suas pressões, de modo que é possível entender as marcas dos gestos deixados pelo pintor na superfície do suporte como um acto de enunciação, onde o real efémero se converte num não real permanente.
Assim sendo, as ruminações de Velázquez e Felipe IV acerca de «Las Meninas» podem ser actualizadas de modo ficcional pelo «vazio essencial» que esta representação institui, a partir ou do interior do dispositivo pictórico. O acto enunciativo, que normalmente se relaciona com a palavra, pode ser deslocado para a pintura, primeiramente, porque como foi indicado por Leroi-Gourhan, a sua origem está intimamente ligada à origem da escrita, em segundo lugar, porque como foi assinalado por Derrida, a escrita partilha os mesmos rasgos atribuídos à fala, ou seja, a distância, a morte, a repetição em ausência com intenção revitalizadora, a ambiguidade, etc.31 e, em terceiro lugar, porque um signo só cumpre a sua função mediadora na relação «ad infinitum» do pensamento. O signo, em definitivo, só é verdadeiramente signo quando a sua utilização pode ser infinitamente repetida nas coordenações de acções recursivas consensuais.
Deve-se, portanto, entender que nem o rei, nem o pintor, pese as suas representações, estão connosco, é o espectador fictício quem ocupa, melhor dizendo, se coloca no lugar do pintor e do rei para ficticiamente tentar recuperar o irrecuperável e para sempre perdido, as indicações acerca do saber (a pintura) e do poder (a autoridade da realeza) que esta representação assinala. Toda a contemplação (leitura) está sempre por realizar e, numa perspectiva derridiana, dir-se-á que o texto sobrevive, tanto ao autor como ao leitor.
O pintor pintado de «Las Meninas» pode ser entendido como a representação do pólo mão-grafia-olhos. «A mão hábil está suspensa do olhar; e o olhar, por sua vez, repousa no gesto imobilizado32 O utensílio com que se marca ou se pinta, não é só uma extensão da mão, é também, um prolongamento da visão, do olhar, do que alguma vez foi olhado. Nas marcas, nas pinceladas deixadas na superfície da tela de «Las Meninas» estão cristalizados os olhares que familiarmente partilham as pessoas representadas nesse quadro e, o olhar distanciado, de Velázquez e de Felipe IV, que «a partir» do saber (a pintura) e do poder (o poder da monarquia) realizaram sobre a pintura e o poder da monarquia. No pintor pintado de «Las Meninas» misturam-se, portanto, o autoretrato de Velázquez e o retrato disciplinar desse pólo operacional. É o retrato distanciado de si mesmo e da sua actividade disciplinar.
A personagem do pintor de «Las Meninas», é um nobre que finge ser pintor ou é um pintor que finge ser nobre? Uma coisa é pelo menos certa, o pintor pintando encontra-se entre a história da pintura, ou seja, as disposições e discursos disciplinares, representados pelos numerosos quadros pendurados nas suas costas e o futuro, relativamente, às possíveis e novas proposições disciplinares que a grande tela de costas para o espectador simboliza na sua impossibilidade de ser olhada. A história da pintura não é mais que uma constante acumulação de obscurecidos quadros nos muros, mas apesar disso, com muita dificuldade e esforço alguma coisa consegue ser distinguida de toda essa monótona acumulação de objectos.
Ao fundo da sala, sobre o espelho pintado, duas pinturas conseguem ser reconhecidas, são as copias realizadas por Juan Bautista del Mazo, aluno e marido da filha de Velázquez (uma intenção em sublinhar algum aspecto de familiaridade?), dos quadros de Rubens e de Jordaens, Minerva e Aracne e, Apolo e Pan, respectivamente. Parecerá que alguma coisa se ilumina pelo carácter mitológico e alegórico desses dois quadros33, momento de recuperação que rapidamente se transforma numa possibilidade de perda. O que aparentemente se recuperava na possível interpretação alegórica dessas duas pinturas, dilui-se e perde-se perante a reprodução implacável dessa sala do Alcázar de Madrid, cuja absoluta realidade é confirmada pela documentação precisa e irrefutável da verdadeira posição dos quadros, devidamente indicada nos inventários do palácio, relativizando desta forma, o suposto sinal interpretativo que se apresenta nessas duas pinturas.
Transparente e intencionado movimento de distanciamento realizado na configuração estrutural do quadro. Mas, novamente começa um movimento de tomada de distância. Existe sempre alguém, de carne e osso, por detrás de um olhar. Por muito verdadeira que seja a tomada de vistas, não se deve esquecer que foi realizada por um sujeito com os seus próprios pontos de vista em relação às coisas e ao mundo, neste caso específico sobre um problema político que envolve a dignidade disciplinar. Ao reconhecer-se o pintor pintado de «Las Meninas» como um autoretrato de Velázquez poderá afirmar-se com toda segurança que Velázquez se considerava um pintor e não um nobre?34 Pode um nobre interessar-se por problemas políticos de um âmbito tão discutível como a pintura? Quem pintou «Las Meninas», o Velázquez pintor ou, o Velázquez com claras intenções de nobreza? Em definitivo, há alguma possibilidade de estabelecer com absoluta certeza as competências, os limites, de ser pintor e de ser nobre nessa personagem do pintor em «Las Meninas»? Qualquer intenção em estabelecer uma determinada esfera disciplinar, seja da pintura ou dos comportamentos cavalheirescos de um nobre, torna-se improvável nessa figura do pintor(?) pintado de «Las Meninas». Esta situação, bloqueia também, qualquer intenção em estabelecer uma distância irónica entre esses dois pólos porque se verifica a impossibilidade de uma separação nítida dos mesmos. Tal como Camus, no seu texto «A Queda», o julgamento irónico não pode ter lugar perante essa impossibilidade, perante a manifesta indefinição dos limites. Não há nesta representação do pintor pintado uma vontade clara de inscrição nalgum grupo, pese a evidente demonstração emblemática com a qual é vestida a personagem e, que culminará com a lendária história do rei pintando o emblema da ordem de Santiago sobre o peito do pintor pintado. Nesse ponto é possível marcar uma diferença relativamente aos aspectos de regularidade e originalidade. Os indícios de regularidade manifestam-se com clareza no dispositivo pictórico de «Las Meninas» e estabelecem uma distância clara com os aspectos de originalidade biográfica de Velázquez, quer dizer, o anelo de nobreza por parte do pintor sevilhano são confirmados por uma série de documentos, mas no estrito espaço da representação, pode-se indicar com toda convicção uma atitude desprendida que confirma a presença do distanciamento neste dispositivo pictórico. Os movimentos de perda e recuperação, da queda-distanciada, em relação à personagem do pintor e do nobre, representados numa mesma figura, verificam-se com nitidez.
Outra personagem vive na cena da representação uma situação semelhante, é da infanta Margarita. Ela também está fixada, literalmente pregada, na história do poder. Atrás dela a imagem dos seus pais no espelho pintado e, perante ela, fora do quadro, o lugar soberano que algum dia talvez possa ocupar. Entre o saber e o poder estabelecem-se relações e diferenças. O saber é a constituição do arquivo, é físico e concreto como todos esses quadros representados nas paredes e como arrogantemente mostra o reverso da grande tela que o pintor pintado aparentemente pinta. O poder, pelo contrário, é um conjunto de forças, pressões, que golpeiam com força física, mas que não se constituem como uma forma definida e determinada. É como a imagem fugidia de um espelho que em qualquer momento pode desaparecer ou ser trocada. O rei sabe disso, sabe e conhece a precaridade dessa situação, o que provoca que o olhar directo, digno e inocente da infanta Margarita, surgido «a partir» daquele lugar de trânsito entre o passado e o futuro, não possa ser sustentado directamente por ele. O olhar do rei, o olhar do pai a sua filha, é representado na presença simbólica do reflexo do espelho pintado como uma maneira de perpetuar e velar por esse instante de confiança e conforto que a familiaridade do quotidiano institui.

Emmens dá importância a uma situação, poder-se-á dizer quotidiana, descrita por Palomino. Esta situação é a acção que envolve o cão e Nicolasito:
Palomino, que parece haber conocido la significación de «Las Meninas», en mi opinión alegórica desde un principio, menciona que se dan patadas al perro «para explicar, al mismo tiempo que su ferocidad en la figura, lo doméstico y manso en el sufrimiento». Semejante dominio de sí mismo conviene al animal, que en las artes plásticas del siglo XVII cumple en varias ocasiones su antiguo papel de Fides, palabra que tiene el doble sentido de fe y de fidelidad.35

É necessário salientar algumas considerações relativamente a esta citação. A afirmação de Emmens: «Palomino, que parece haber conocido la significación de “Las Meninas”» parece um tanto precipitada. Sem dúvida que Palomino teve a possibilidade de falar com fontes que conheceram a Velázquez, entre elas o seu próprio genro, Juan Bautista del Mazo, mas uma coisa bem diferente é ter tido a possibilidade real de aceder às operações discursivas de carácter privado de Felipe IV e Velázquez, assim como é impossível o seu aceso às experiências discursivas operando na exterioridade de Velázquez. E também não se deve esquecer que todo o texto sobrevive ao seu autor, ou seja, são as próprias configurações textuais que organizam e definem a sua leitura. Evidentemente, Palomino com toda certeza conheceu de forma fragmentada por segundas e terceiras pessoas próximas, tanto de Velázquez como de Felipe IV, algumas das explicações dadas aos elementos e personagens apresentados em «Las Meninas» e, naturalmente, organizou essas informações de acordo com o seu próprio saber. Saber orientado pelo conhecimento da época, quer dizer, com forte incidência alegórica da qual Palomino faz uma demonstração ao interpretar o significado do gesto do Nicolasito sobre o cão. Isto significa que a interpretação alegórica de «Las Meninas» responde e estrutura-se por uma lógica que é partilhada por Emmens, mas que não tem que ser a única e exclusiva significação. Se fosse assim, correr-se-ia o perigo de ver a biblioteca de Velázquez como o pensamento de Velázquez e entender «Las Meninas» como uma simples ilustração dos conhecimentos daqueles livros, reproduzindo deste modo, a demanda de obediência de um discurso hegemónico. É importante, sem dúvida, conhecer o que Velázquez tinha na sua biblioteca particular, mas isso não assegura, de nenhuma forma, a leitura de todos aqueles livros, como também não diz a forma como os compreendeu e utilizou o pintor sevilhano.

O facto de Palomino salientar a acção que envolve Nicolasito e o cão, pode ser um indício de que alguma coisa ouviu a esse respeito, mas não implica que seja a explicação alegórica a sua exclusiva significação. Que este relato, no interior do relato deste não-acontecimento seja importante não há dúvidas, está aí. Mas, o que está aí representado? Em primeiro lugar haveria que estabelecer uma diferença em relação ao relato de Palomino assinalado por Emmens. Nicolasito não está representado a dar pontapés36 ao cão, o que nesta cena se mostra é que está a pôr o seu pé esquerdo sobre o animal, provavelmente, fazendo alguma pressão, estaria a empurrá-lo, convidando-o a mexer-se, a interromper a sua agradável quietude. Que Velázquez deu importância a esta representação é evidente, pelo cuidado e esmero na reprodução do próprio sapato e na nitidez da sua «visibilidade» se for comparada, por exemplo, com o gesto solícito da mão esquerda de doña María Agustina Sarmiento quando oferece um «búcaro o jarrita de barro colorado»37 à infanta Margarita.

 Ou, colocado numa outra perspectiva, o gesto da mão da menina é representado como tal, quer dizer, é pintado como gesto, como movimento de chamada de atenção respeitoso e serviçal. Não é reproduzida uma mão, tenta-se reproduzir a realidade do gesto da mão na sua dimensão de movimento. Deste ponto de vista, poder-se-á dizer que a «nitidez», entendida como a eficácia das possíveis intenções representativas, é a mesma da representação do sapato de Nicolasito. Portanto, e apesar das suas diferenças técnicas nas suas representações pictóricas, poderiam desta perspectiva, ser absolutamente equivalentes. O que sublinha ainda mais a importância desse gesto de Nicolasito e do seu sapato sobre o cão, daí que os aspectos apresentados na própria figura do anão sejam duplamente significativos. O sapato é representado na sua máxima nitidez e, curiosamente, o seu rosto é reproduzido de uma forma que não permite distinguir com suficiente clareza as características físicas que, de algum modo, lhe conferem a sua identidade. Dir-se-á que a sua identidade está naquele gesto que o seu sapato (nitidamente pintado) sobre o lombo do cão representa e, não no seu rosto.
Estas chamadas de atenção, talvez, possam permitir uma aproximação mais sólida à pergunta: mas, o que está aí representado? Provavelmente, como Palomino e Emmens indicaram, deve haver alguma referência alegórica, mas não só, há também um grande e virtuoso investimento técnico. As diferenças nos modos das representações entre o rosto e o sapato, não podem ser casuais, ou seja, não se pode colocar Velázquez numa atitude consciente das informações e do saber transmitido pelos livros e desatento dos próprios procedimentos pictóricos e das suas implicações visuais para um possível espectador atento. O investimento técnico-pictórico realizado pelo pólo mão-grafia-olhos deve ter também a sua intenção. Intenção que no dispositivo pictórico tem a mesma importância que um qualquer saber textual e, portanto, deve ser prestada a devida consideração.
As normas da alegoria podem ser colocadas como constrangimentos disciplinares, é o saber disciplinar que exerce o seu poder e nesse sentido o cão pode ser visto como a fé e a fidelidade, mas assumem-se os sinais das diferentes técnicas pictóricas empregues por Velázquez na representação do cão, do sapato e do rosto do anão, então, pode ser visto este relato, o gesto que envolve o anão e o cão, como uma possível marca da identidade do irrequieto Nicolasito. Entre Nicolasito e o cão existe uma cumplicidade, um conhecimento recíproco, ambos sabem até onde podem chegar nas sua brincadeiras. Nicolasito sabe perfeitamente quando e como o cão responderá, tem total segurança dos limites da sua provocação, reconhece nos grunhidos (perfeitamente imagináveis) do cão, motivados pela pressão do seu pé, a espiral ascendente do humor do animal que, pouco a pouco e, dependente, do seu pé, irá ou poderá modificar o seu plácido comportamento. Ou seja, e no aspecto que interessa salientar, esta representação é mais um sinal do amparo e da confiança quotidiana que o olhar simbólico do reflexo de Felipe IV e da rainha Mariana gostariam de configurar para a infanta Margarita. Velázquez, distancia-se deste modo, uma vez mais, dos interesses e das normas disciplinares para assim colocar em cena as questões que dizem respeito às actividades discursivas operando na exterioridade, as quais, incidem sobre a pintura e o poder. Com esta estratégia claramente manifestada no dispositivo pictórico de «Las Meninas» dilui-se, o esperado, em termos disciplinares (o mito alegórico), na realidade do dado pela própria pintura, «Había hecho el descubrimiento más impopular: que la realidad se diferencia del mito en que no está nunca acabada38
Por detrás de uma leitura alegórica, da qual, provavelmente Velázquez era consciente, o pintor sevilhano introduz um momento, um gesto quotidiano (partilhado por qualquer espectador que alguma vez teve um cão e brincou com ele), que procura diluir a hegemonia da norma disciplinar. A técnica utilizada na representação dessa acção, que sublinha a identidade no gesto, na atitude e na «nitidez» desse sapato, em vez da descrição acabada e precisa do rosto, são sinais que pretendem evitar a clausura, abrindo assim a possibilidade de desvio na norma disciplinar. É um outro claro e transparente momento de distanciamento que permite a coexistência do poder e do saber nesse espaço híbrido. Sem a necessidade de hierarquias, nem de demonstrações de sabedoria disciplinar, nem de inscrições num determinado lugar e onde os momentos quotidianos sublinham e promovem a queda-distanciada no dispositivo pictórico de «Las Meninas».
É evidente que o discurso que liga Velázquez – Manet – Cézanne numa só direcção «até atingir a verdade bidimensional do quadro» é um discurso interessado ou, então, distraído dos reiterados sinais de distanciamento das normas disciplinares que o dispositivo pictórico de «Las Meninas» indica, quer dizer, não deixa de ser curioso sublinhar o aspecto plástico da técnica velazquenha para, deste modo, colocar Velázquez no início dessa cadeia, e negligenciar os aspectos políticos dessa plasticidade39. A forma como o distanciamento se dobra sobre este si mesmo da pintura não tem comparação com o modo do ensimesmamento que exemplifica, entre outros Cézanne. Portanto, encadear Velázquez – Manet – Cézanne requer, paralelamente, desenvolver toda uma política de reduções e discriminações que procuram minimizar as palavras, os relatos e a ficção40 que rodeiam a indiscutível obra prima de Velázquez, como também, a própria técnica do pintor.

De Velázquez praticamente desconhecem-se desenhos, teve que participar num concurso para demonstrar as suas capacidades de invenção para calar os seus críticos que o viam apenas como um pintor de cabeças41. Quer dizer, é difícil ver em Velázquez um exemplo da aplicação do saber pictórico acumulado até então ou como uma síntese do mesmo. É mais provável que a realidade fosse diferente. Resulta mais credível uma atitude de confrontação reflectida e distanciada em relação a esse saber, mais que a sua confirmação42. Nesse sentido, se for verdadeira a hipótese de Moffit relativamente à utilização por parte de Velázquez da câmara obscura ou do véu de Alberti, ainda que a sua utilização pareça algo inusual na forma como Velázquez abordava o acontecimento da pintura, responderia, no entanto, simplesmente a um critério de eficácia processual, o que corroboraria a distância relativamente ao desenho que Velázquez demonstra no seu dispositivo pictórico. Se não for verdadeira ou muito difícil de provar essa hipótese de Moffit, pois então, fica a prova indesmentível da presença da técnica velazquenha em cada um dos seus quadros, onde o desenho, considerado a estrutura básica e também simbólica da pintura nas disposições disciplinares, é constantemente colocada de forma secundária ou, melhor dizendo, ambígua 43.
A plasticidade política, porque distanciada perante o poder das disposições disciplinares, no dispositivo pictórico de Velázquez fica em evidência num outro extraordinário gesto de expressão política onde se estabelecem duas possibilidades para logo ser diluídas na queda-distanciada do distanciamento.

José Nieto Velázquez permanece na sua estabilidade aparente, a massa do seu corpo resiste à luz, plena e potente que inunda aquele espaço que todas as personagens, nalgum momento, deverão enfrentar. A massa do corpo e a massa da luz enfrentam-se na sua luta silenciosa evitando que aquela imensa e potente zona iluminada apague, com a sua intensidade, a cena que se representa nos primeiros planos. Curiosamente, e propositadamente, Velázquez deixou passar de toda essa grandiosa massa luminosa um pequeno e frágil fio de luz. Uma ténue e diagonal linha luminosa que entra timidamente ao ateliê onde o pintor é o soberano dos elementos. Essa franja de luz arrasta-se desde a porta para a sua direita, e à medida em que avança dirigindo-se à obscuridade, divide uma grande zona escura em duas partes. Sobre a parte superior, encontra-se o espelho pintado e, debaixo dessa linha luminosa, outra zona é demarcada pelos bordos das representações de doña María Agustina Sarmiento e da infanta Margarita. Esse limite luminoso diagonal estabelece, ao comparar as formas das zonas que gera, uma ideia de distância, fazendo acreditar que uma está à frente da outra, o que ajuda significativamente a representação espacial de todo o lugar.

Dir-se-á que a sensação de profundidade tem, nessa frágil linha pintada um dos seus componentes mais importantes, é um gesto pictórico significativo para a representação do espaço onde se desenvolve este não-acontecimento. Mas ao observar com atenção esse gesto, essa marca do pólo mão-grafia-olhos, percebe-se que carece da destreza e precisão do talento manual que se associa habitualmente a Velázquez e que radica, de forma privilegiada, na articulação do punho. É a articulação do punho, a sua grande flexibilidade de rotação que permite a possibilidade de sucessivos toques do pincel num pequeno período de tempo. A grandeza plástica do gesto velazquenho, dizem os historiadores da arte, está na capacidade assombrosamente eficaz de relacionamento entre a mão e o olhar, de tal modo, que com poucas e rápidas pinceladas Velázquez consegue fixar com extraordinária simplicidade, mas igualmente de maneira excepcional, os atributos das coisas e dos seres. É esse o gesto que se associa, de forma privilegiada, às supostas intenções plásticas específicas do pictórico e que motivou a denominação de «o pintor dos pintores» para Velázquez. É também esse gesto um dos aspectos mais sublinhados e destacados na ligação Velázquez – Manet – Cézanne, onde é associado e destacado, quase exclusivamente, como um aspecto de expressão plástica em si mesma.
Pois bem, essa maneira sucessiva e entrecortada é utilizada por Velázquez em diversos lugares. A título de exemplo, na representação daquela mão em movimento da menina María Augustina Sarmiento, nas descrições das características dos tecidos das vestimentas das duas meninas e de Maribárbola, na mão do pintor pintado que segura o pincel e, principalmente, no traje da infanta Margarita. Mas, em todos esses lugares esse gesto é usado em função do momento e das intenções da representação, como já foi devidamente assinalado relativamente às mãos de María Agustina Sarmiento e ao sapato de Nicolasito. O que interessa é a intenção, não a plasticidade em si mesma, existe nos gestos uma política intencional determinada, seja para representar o brilho casual dos tecidos ou o movimento da mão; onde se realça a realidade do gesto e não a beleza da forma. As diferenças nos modos técnicos de representação procuram instaurar e, talvez guiar, a sensação de credibilidade deste não-acontecimeto quotidiano, dominado pelas ruminações do pintor e do rei sobre o saber e o poder num espaço privado de subjectivação.
O gesto com que foi realizada essa ténue, mas significativa linha de luz que se introduz no ateliê do pintor para ajudar à representação e contribuir para a credibilidade de toda a cena reproduzida, não tem, aparentemente nada do que normalmente é atribuído ao gesto velazquenho. Parecerá encontrar-se ou, melhor ainda, definir-se como o seu oposto. Esse gesto não tem aquela plasticidade conseguida pela movimentação hábil do punho que fixa e captura o momento do olhar, dir-se-á que é um gesto monótono, desprovido de toda destreza manual, é um gesto vulgar capaz de ser realizado por qualquer um que tenha uma mínima prática de pintura. Esse gesto não é mais do que a sobreposição do pincel sobre a rugosidade do suporte, para logo, de forma desprendida arrastar o pincel pela superfície da tela deixando um rasto do pigmento mais seco no seu caminho. O pigmento vai-se gastando à medida que o pincel avança no seu percurso, nada mais vulgar e nada mais eficaz. Literalmente é a representação da luz, que no seu trajecto se vai diluindo à medida que se introduz no espaço perdendo-se na mais absoluta obscuridade.
Nesse gesto o olhar não é o mesmo, é um olhar totalmente desprendido da contingência que assegurava e ligava o gesto rápido e automático centrado no pulso. O gesto do pulso afirma uma certa dependência do olhar na acção e no modelo, daí que pode ser visto ou confundido como um si mesmo. A sua aparição rápida e eficaz sublinha a sua condição de existência, pelo contrário, essa linha de luz meditada e parcimoniosamente produzida interrompe qualquer ligação automática com o modelo, é um olhar reflectido, detido e distanciado da experiência. Entre um e outro gesto, entre um e outro olhar, estabelece-se uma distância. Distância que se origina pelo deslocamento nos pontos da origem dos gestos: do pulso passa ao ombro e à bacia. Realizar o gesto que origina aquela linha diagonal e luminosa, requer segurar o pincel com o pulso firme, evitando qualquer movimento articular do pulso, depois, o deslizamento do pincel sobre a tela exerce-se pela movimentação de todo o braço com a ajuda da articulação do ombro e com o efeito amplificador e necessário da articulação da bacia. Todo o corpo está aqui envolvido, toda a fisicalidade do corpo se manifesta nesse gesto, o que paralelamente dilui a distância entre o pulso e a bacia, quer dizer, existe uma distância, mas é uma distância progressiva de deslocamento de um ponto ao outro, é uma queda-distanciada que se verifica ordenadamente.
A mão, o pulso, o braço, a bacia e o olhar que acompanha o movimento do pincel encontram-se e participam durante mais tempo com a resistência que oferece a tela. Um olhar absolutamente desprendido de toda a referência contingente, concentrado somente nessa resistência, no percurso. Poder-se-á dizer que a queda-distanciada se efectiva pelo percurso que realiza e descreve a tinta que o pincel carrega. Um olhar que pode quase tocar o que olha, uma vez que o pincel não é só a extensão da mão, é também a extensão do olhar. Um olhar que nunca esteve tão próximo do que é objecto do olhar, do que é olhado.
Esse gesto desprovido, físico e monótono, que magistralmente se introduz fingindo ou disfarçando-se como uma linha de luz no ateliê do pintor pintado, tem na totalidade da representação um equivalente ficcional que possibilita a aparição e a visualidade de todo o não-acontecimento representado. É a luz que entra pelas janelas representadas de «Las Meninas» e que permite ao pintor pintado, pintar e ver o seu hipotético modelo, como também, ao hipotético espectador distinguir os elementos e as personagens que ocupam o espaço da representação para tentar recuperar, pela ficção, o para sempre perdido na quietude dos momentos quotidianos, onde tudo se mistura, o saber, o poder e a subjectivação.
Deste modo, as diferenças plásticas de um e outro gesto, o «plástico» e o «vulgar», diluem-se na queda distanciada e política do distanciamento. As marcas do pólo mão-grafia-olhos devem ser vistas como um aqui e agora, um compromisso, uma eleição política onde não há privilégio, não há beleza num mais que no outro, não há hierarquia nem pureza, não há intenção de inscrição, não há sentido, mas sim condições ou processos de significação. Não há em definitivo, uma suposta plasticidade linguística própria e específica da pintura, separada das palavras e das coordenações recursivas consensuais entre dois ou mais participantes, o que há e se manifesta no dispositivo pictórico são modos de assumir e configurar uma consciência disciplinar. Consciência disciplinar manifestada claramente no próprio espaço da representação, ambos os gestos convivem um com o outro, não se excluem, dir-se-á que as suas presenças sublinham as suas intenções discursivas e políticas do distanciamento.
O discurso político do distanciamento afasta-se, ou pelo menos põe numa situação de fragilidade o discurso disciplinar histórico que privilegia um determinado tipo de gesto, supostamente expressivo e autónomo dos outros elementos não plásticos que se apresentam no espaço da representação44. Pelo contrário, o dispositivo pictórico de «Las Meninas» configura com extrema clareza uma manifesta vontade política em relação aos três domínios que constantemente foram indicados. Um, dos constrangimentos disciplinares ou o saber, outro, dos constrangimentos do discurso com pretensões hegemónicas ou o poder e, finalmente, um domínio da subjectivação ou das opções facultativas para configurar-se como sujeito. A queda-distanciada, à medida que se efectiva, que vai caindo, vai deixando marcas de enunciação configurando o seu discurso «a partir ou do interior» do acontecimento da pintura através dos gestos empreendidos pelo pólo mão-grafia-olhos, desta forma, o seu discurso surge do próprio espaço da representação e precisa sempre dele para construir e defender a credibilidade da sua ficção.
O ensimesmamento, a ironia e o distanciamento são os modos pelos quais se manifesta a possibilidade de uma consciência disciplinar no e do dispositivo pictórico, mas o único verdadeiramente político é o distanciamento, porque o seu modo de resistir perante o poder não permite a institucionalização de um qualquer discurso que pretende ocupar o espaço da descontinuidade e abre, deste modo, a possibilidade da participação na discussão, sem diferenças e hierarquias, a todas as coisas.




1 FOUCAULT, M. – As palavras e as coisas, pág. 59.
2Um novo arquivista é nomeado na cidade. Mas será ele, a bem dizer, nomeado? Não será por suas próprias instruções que ele actua? (…) Não se ocupará daquilo que, de mil maneiras, fazia o enlevo dos arquivistas precedentes: as proposições e as frases. (…) Móvel, instalar-se-á numa espécie de diagonal, que tornará legível aquilo que não se podia apreender de outro modo, precisamente os enunciados. Uma lógica atonal? É natural que se sinta uma inquietação. Porque o arquivista faz questão de não dar exemplos.” DELEUZE, G. – Foucault, pág. 19-20-
3 FOUCAULT, M. – As palavras e as coisas, pág. 65.
4 Op. cit., pág. 69.
5 Veja-se em relação à determinação do ponto de fuga em «Las Meninas», por exemplo, os trabalhos de Joel Snyder e Ted Cohen, de J. Snyder ou, de John E. Moffit, in Otras Meninas.
6 Veja-se, SNYDER, J. – Las Meninas y el espejo del príncipe, pág. 133-134, in Otras Meninas.
7 Op. cit., pág. 137.
8 SNYDER, J. – Las Meninas y el espejo del príncipe, pág. 132, in Otras Meninas.
9 Op. cit., pág. 134.
10 FOUCAULT, M. – As palavras e as coisas, pág. 65.
11 Op. cit., pág. 70-71.
12 A representação velazquenha é de tal exactidão que John F. Moffit não duvida em afirmar que Velázquez deve ter utilizado meios mecânicos (câmara obscura e o velo de Alberti) para reproduzir esta sala do Alcázar de Madrid, veja-se: MOFFIT, J. – Anatomia de Las Meninas: Realidad, Ciencia y Arquitectura in Otras Meninas.
13 Ernst Cassirer introduz a ideia das formas simbólicas, as quais tem uma relativa autonomia, uma vez que desenvolvem-se de acordo a seus próprios princípios constituintes, posteriormente, Panofsky, no seu texto «A perspectiva como forma simbólica» desenvolverá esta ideia de Cassirer. Esta pequena referência para sublinhar que a perspectiva artificialis redescoberta no Renascimento (já era conhecida na Antiguidade grega e romana de forma empírica, mas nunca teve o valor simbólico dado no Renascimento) pretendia simbolizar o olhar de Deus. O raio luminoso de Alberti era denominado como o «raio divino».
14 SNYDER, J. – Las Meninas y el espejo del príncipe, pág. 134, in Otras Meninas.
15 FOUCAULT, M. – As palavras e as coisas, pág. 351-352.
16 O espelho de príncipes seria a representação idealizada do soberano, a qual se apresentava como exemplo educativo, retomando de alguma forma o papel que já Plínio indicava para o retrato (veja-se nota xx, capítulo x). Por outra parte, o espelho dos príncipes foi um género literário muito desenvolvido na Idade Media e, na Espanha do século XVII, aparece um texto de Saavedra Fajardo denominado: «Idea de un Príncipe Político-Christiano» (1640) como é assinalado por J. A. Emmens na sua interpretação iconologica de «Las Meninas». Para uma aproximação das interpretações que desenvolvem esta ideia de um «espelho de príncipes», veja-se: EMMENS, J. A. – Las Meninas de Velázquez: Espejo de Príncipes para Felipe IV, e, SNYDER, J. – Las Meninas y el espejo del Príncipe in Otras Meninas.
17 Op. cit., pág. 99.
18 No sentido que Eco da a estes termos, veja-se, págs. 35-36 e 41 de Os Limites da Interpretação.
19 STEINBERG, L. – Las Meninas de Velázquez, págs. 97 e 101, respectivamente.
20 STEINBERG, L. – Las Meninas de Velázquez, pág. 94, in Otras Meninas.
21 Op. cit., pág. 94.
22 Op. cit., pág. 95.
23 FOUCAULT, M. – As palavras e as coisas, pág. 70.
24 Evidentemente num sentido figurado ou ficcional, já que numa visão lógica nunca é possível estar com eles. Utilizando, de alguma forma, este «sentido lógico» Stoichita minimiza as intenções especulativas da frase «Mas, onde está o quadro?». Veja-se STOICHITA, V. – Imago Regis: Teoría del arte y retrato real en Las Meninas de Velázquez, in Otras Meninas.
25 FOUCAULT, M. – As palavras e as coisas, pág. 71.
26 Situação devidamente apontada por Brown, Moffit e também por Stoichita. Veja-se, tanto o texto de John Moffit, já assinalado como os textos de Victor Stoichita: Imago Regis: Teoría del arte y retrato real en Las Meninas de Velázquez, e de Jonathan Brown: Sobre el significado de Las Meninas, in Otras Meninas.
27 Fernando Marías indica-o no seu texto: «…y el Despacho de Verano del Rey como su lugar de exposición.» MARÍAS, F. – El género de Las Meninas: Los servicios de la Familia, pág. 249, in Otras Meninas.
28 «Oye lo que yo oí de Su Majestad hablándole sobre este caso (o caso é a nobreza da pintura), dije: “Señor, en todas las monarquías y en todas las edades ha sido el arte de la pintura tenido por noble y liberal” y pensando proseguir en mi discurso para probarlo, me atajó Su Majestad, respondiendo: “es verdad”. CARDUCHO, V. – Dialogos de la pintura, cit. por BROWN, J. in Sobre el significado de Las Meninas, pag. 89.
29 As relações com a história de Apeles e Alexandre Magno são devidamente indicadas por: BROWN, J. - Sobre el significado de Las Meninas, in Otras Meninas.
30 André Leroi-Gourhan colocava a motricidade como condição primeira e necessária para a criação da linguagem e a identificação deste pólo operacional como mão-grafia-olhos assume, totalmente, a sua filiação com as ideias do antropólogo. Leroi-Gourhan atribuía em dois pólos a origem, tanto, da linguagem, da técnica como da arte figurativa. Eram estes a mão-motricidade-grafia e a face-gesto-leitura, ambos os pólos seriam elementos de pesquisa e interacção com o mundo e, portanto, a linguagem, a técnica e a arte, teriam uma mesma origem: “Particularmente interessante é o facto de o grafismo não ter começado por uma expressão «servil» e fotográfica do real, mas organizando-se, numa dezena de mil anos, a partir de sinais que parecem ter exprimido primeiramente os ritmos e não as formas. (…) Estas considerações permitem fazer sobressair que a arte figurativa está, na sua origem, directamente ligada à linguagem e muito mais próxima da escrita no sentido lato do que a obra de arte. (…) Para o símbolo como para a palavra, o abstracto corresponde a uma adaptação progressiva do dispositivo motor de expressão a solicitações cerebrais cada vez mais precisas. De tal modo que as figuras mais antigas que se conhecem não representam cenas de caça, animais a morrer ou cenas de família. São símbolos gráficos sem ligação descritiva, suporte de um contexto oral irremediavelmente perdido”. LEROI-GOURHAN, A. – O gesto e a palavra, 1 – Técnica e Linguagem, págs. 190-191.
31 Veja-se a modo introdutório: Jacques Derrida de BENNINGTON, G.
32 FOUCAULT, M. – As palavras e as coisas, pág. 59.
33 Os especialistas na história da arte, interpretam maioritariamente, a presença dessas duas reproduções como o triunfo da Arte (entendido como ideia, quer dizer, ut pictura poesis) sobre os aspectos manuais e de artesanato (aspectos técnicos vistos pejorativamente, ou seja, como uma crítica aos sofistas).
34 «Al terminar su retrato de Inocencio X, el Papa le envía, como remuneración, una cadena de oro. Con inaudito gesto Velázquez la devuelve, haciendo saber que él no es un pintor, sino un servidor de su rey, al que sirve con su pincel cuando recibe orden de hacerlo. Este gesto solemne con que Velázquez repudia el oficio de pintor nos aclara toda su vida anterior. En el decenio último de 1650 a 1660, se acusa cada vez más la secreta verdad de toda su biografia, la enorme paradoja. Velázquez no quiere, no há querido nunca, ser pintor. Bastaría esto para hacernos comprender por qué pintó tan poco sin necesidad de recurrir a explicaciones como la falta de tiempo.» ORTEGA Y GASSET, J. – Velázquez, págs. 24-25.
35 EMMENS, J.A. – Las Meninas de Velázquez: Espejo de Príncipes para Felipe IV, pág. 56, in Otras Meninas.
36 Embora, reconhecendo evidentemente, que uma representação não é a «realidade», tecnicamente um pontapé implica uma acção mais explícita de todo o corpo para desencadear o movimento explosivo do pontapé. Ademais, normalmente um pontapé é um golpe lateral onde o ângulo formado entre o tornozelo e o peito do pé é mais aberto para possibilitar maior superfície de impacto ou, então, mais agudo para golpear com a ponta do pé. O que claramente não acontece nesta imagem, Nicolasito, está colocando, com algum cuidado para manter o seu equilíbrio, a planta do seu sapato sobre o cão.
37 GALLEGO, J. – Las Meninas o La familia de Felipe IV, Catalogo da exposição Velázquez, pág. 423.
38 ORTEGA Y GASSET, J. – Velázquez, pág. 45.
39 Franz Hals (1581,1585-1666), para dar só um exemplo, também utilizava uma técnica de pinceladas que não ocultavam a sua origem no gesto desenvolvido principalmente no pulso, quer dizer, entre a mão, o pincel (carregado de tinta) e a motricidade flexível e variada que proporciona essa articulação. E no entanto, coloca-se Velázquez de forma privilegiada no início dessa cadeia de uma só direcção.
40 Apesar das críticas de «subjectividade» que sofrem os textos de Ortega Y Gasset dedicados ao pintor sevilhano, este autor é dos poucos que se refere de forma extensa à técnica pictórica de Velázquez num contexto global e não exclusivamente formal, associando-a ao modo de ser de Velázquez. Talvez isto explique a dita crítica, no entanto, este facto não diminui em nada a justeza das suas observações se colocadas numa instancia de regularidade e não de originalidade. O filósofo espanhol especula o seguinte: «siente (Velázquez) hartazgo de belleza, de poesía y un ansia de prosa. La prosa es la forma de madurez a que el arte llega tras largas experiencias de juego poético.» ORTEGA Y GASSET, J. – Velázquez, pág. 52. Quer dizer, a prosa em vez da poesia, o relato, a ficção que procurava Foucault em «Las Meninas», já havia sido indicada por Ortega Y Gasset na obra do pintor sevilhano.
41 Foi o quadro (actualmente perdido) «A expulsão dos mouriscos» que unânimemente foi considerado como o melhor de todos os apresentados pelos pintores do rei.
42 Veja-se neste sentido: ORTEGA Y GASSET, J. – Velázquez.
43 Também não pareceria muito transparente colocar Velázquez como o precursor da discussão: desenho ou a cor, que motivou acaloradas disputas, uma vez que, os pintores que participavam nessa discussão procuravam um si mesmo, uma interioridade básica e específica para a pintura, quer dizer, o ensimesmamento. E o que se manifesta no dispositivo pictórico dos trabalhos do pintor espanhol é o distanciamento.
44 Nesse sentido pode indicar-se uma diferença política, relativamente ao discurso que promove, por exemplo, o gesto de Velázquez e de Pollock. O gesto velazquenho é claramente e assumidamente distanciado, quer em relação aos requerimentos disciplinares quer ao discurso do poder quer em relação às políticas de subjectivação. Não sucede o mesmo no dispositivo pictórico de Pollock, em primeiro lugar, porque a potência do gesto pollockiano radica na sua força, no seu impacto como existência, dir-se-á que é um magnifico e potente estado balbuciante. Deste modo, predispõe a que o seu discurso seja gerado no exterior do espaço da representação por um «tradutor», por um sujeito privilegiado que legitima a sua ligação ao discurso disciplinar histórico. Pode-se dizer, então, que o dispositivo pictórico pollockiano carece ou não mostra vontade política própria perante o poder do discurso disciplinar, mas sim, vontade por se inscrever nele, cedendo ao sujeito privilegiado a formação e justificação do seu discurso.